POEMAS ESCOLHIDOS DE GUILHERME DE ALMEIDA

/
0 Comments
Guilherme de Almeida - acervo Casa da Colina


A dança das horas
Frêmito de asas, vibração ligeira
de pés alvos e nus,
que dançam, tontos, como dança a poeira
numa réstia de luz...

São as horas, que descem por um fio
de cabelo do sol,
e vivem num contínuo corrupio,
mais obedientes do que o girassol.

Dançando, as doze bailarinas tecem
a vida; e, embora irmãs,
não se vêm, não se dão, não se parecem
as doze tecelãs!

E, de mãos dadas, confundidas quase,
no invisível sabá,
elas são silenciosas como a gaze,
ou farfalhante como o tafetá.

Frágeis: têm a estrutura inconsistente
de teia imaterial,
que uma aranha teceu pacientemente
nos teares de um rosal.

E, entre tules volantes, noite e dia,
o alado torvelim
vertiginosamente rodopia,
numa elasticidade de Arlequim!

Vêm coroadas de rosas, num remoinho
cambiante de ouro em pó:
cada rosa, que esconde o seu espinho,
dura um minuto só.

Sessenta rosas, vivas como brasas,
traz cada uma; e, ao bater
da talagarça diáfana das asas,
põem-se as coroas a resplandecer...

À proporção que gira à minha frente
o bailado fugaz,
cada grinalda, vagarosamente,
aos poucos, se desfaz.

E quando as doze dançarinas, feitas
de plumas, vão recuar,
levam as frontes, claras e perfeitas,
circundadas de espinhos, a sangrar...

Assim, depois que a estranha sarabanda
na sombra se dilui,
penso, vendo o outro bando que ciranda
em torno do que fui,

que há uma alma em cada gesto e em cada passo
das horas que se vão:
pois fica a sombra de seu véu no espaço,
fica o silêncio de seus pés no chão!...
- Guilherme de Almeida, em "A dança das horas". 1919.


Cubismo
Guilherme de Almeida - acervo Casa da Colina
Um Arlequim feito de cubos
equilibrados:
trinta losangos arranjados
sobre dois tubos.
— Ele talvez
jogue xadrez…

No halo, que a lâmpada tranquila
rasga, de cima,
esse Arlequim de pantomima
oscila, oscila,
e vem… e vai…
e quase cai…

Mas entra alguém: é uma silhueta
que espia e passa.
Seu riso é um fruto sob a graça
da mosca preta
— É uma mulher
como qualquer…

Um gesto só lânguido e doce:
e, num instante,
Dom Arlequim, o petulante,
esfarelou-se…
— Todo Arlequim
é mesmo assim…
- Guilherme de Almeida, em "Encantamento". 1925.


Cuidado!
Ó namorados que passais, sonhando,
quando bóia, no céu, a lua cheia!
Que andais traçando corações na areia
e corações nos peitos apagando!

Desperta os ninhos vosso passo... E quando
pelas bocas em flor o amor chilreia,
nem sei se é o vosso beijo que gorjeia,
se são as aves que se estão beijando...

Mais cuidado! Não vá vossa alegria
afligir tanta gente que seria
feliz sem nunca ouvir nem ver!

Poupai a ingenuidade delicada
dos que amaram sem nunca dizer nada,
dos que foram amados sem saber!
- Guilherme de Almeida, em "Messidor". 1919.



Harmonia velha
O teu beijo resume
Todas as sensações dos meus sentidos
A cor, o gosto, o tato, a música, o perfume
Dos teus lábios acesos e estendidos
Fazem a escala ardente com que acordas o fauno encantador
Que, na lira sensual de cinco cordas,
Tange a canção do amor!

E o tato mais vibrante,
O sabor mais sutil, a cor mais louca,
O perfume mais doido, o som mais provocante
Moram na flor triunfal da tua boca!
Flor que se olha, e ouve, e toca, e prova, e aspira;
Flor de alma, que é também
Um acorde em minha lira,
Que é meu mal e é meu bem...

Se uma emoção estranha
o gosto de uma fruta, a luz de um poente -
chega a mim, não sei de onde, e bruscamente ganha
qualquer sentido meu, é a ti somente
que ouço, ou aspiro, ou provo, ou toco, ou vejo...
E acabo de pensar
Que qualquer emoção vem de teu beijo
Que anda disperso no ar...
- Guilherme de Almeida


Humorismo
Sossego macio da tarde.
Um sol cansado
passa pelo rosto suado
uma nuvenzinha alva como um lenço
para enxugar as primeiras estrelas.
Silêncio.

E o sol vai caminhando sobre os montes tranqüilos
vai cochilando. E de repente
tropeça e cai redondamente
sob a pateada dos sapos e a vaia dos grilos.
- Guilherme de Almeida, em "Meu: livro de estampas". 1925.


cântico dos cânticos
Guilherme de Almeida, por (...)
       Ego dilecto meo, et dilectus
      meus mihi, qui pascitur inter
      lilia.
      (Cânticos, VI, 2).

Este é o meu Cântico dos Cânticos,
a exaltação da minha vida,
toda a expressão do meu amor.
Meus pobres olhos são românticos
porque me viram refletida
nos olhos bons do meu Senhor.

O Bem Amado é longo e pálido,
pálido e longo como um lírio,
e suave, e bom como um perdão.
Ao seu contato amante e cálido,
meu corpo todo é como um círio
piedoso aceso em sua mão.

A sua mão é meu oráculo:
tomo-lhe os dedos e desfolho-os
como se fosse um malmequer.
O seu olhar é um tabernáculo
onde eu adoro estes meus olhos,
estes meus olhos de mulher.

Em cada nervo, em cada músculo
ele tem sombras de sol posto
que se prolongam sobre mim:
por isso há sempre este crepúsculo
agonizando no meu rosto
feito de cinza e de marfim.

É como o sol a sua túnica.
Com longos fios de cabelo
da minha trança, que cortei,
fiz-lhe esse manto esplêndido, única
e simplesmente para vê-lo
vestido de ouro, como um rei.

Sempre que estendo a mão fanática,
ou que debruço o olhar tristonho
sobre o meu lago espiritual,
é como uma alva flor aquática,
na superfície do meu sonho,
sua silhueta de cristal.

Como volutas de um turíbulo,
voaram meus braços para o Eleito,
desde a primeira vez que o vi.
Quando transpus o seu vestíbulo,
meu coração fugiu do peito:
foi nos meus joelhos que o senti!
- Guilherme de Almeida, em "Livro de horas de Soror Dolorosa". 1920.


Soneto XXXII
Quando a chuva cessava e um vento fino
franzia a tarde tímida e lavada,
eu saía a brincar, pela calçada,
nos meus tempos felizes de menino.

Fazia, de papel, toda uma armada;
e, estendendo meu braço pequenino,
eu soltava os barquinhos, sem destino,
ao longo das sarjetas, na enxurrada...

Fiquei moço. E hoje sei, pensando neles,
que não são barcos de ouro os meus ideais:
são feitos de papel, são como aqueles,

perfeitamente, exatamente iguais...
- Que os meus barquinhos, lá se foram eles!
Foram-se embora e não voltaram mais!
- Guilherme de Almeida, em "Nós". 1917.


You may also like

Nenhum comentário: