Eugénio de Andrade - poemas

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Eugénio de Andrade - foto: (...)
Eugénio de Andrade nasceu em Póvoa de Atalaia (19. 01. 1923), uma aldeia da Beira Baixa onde passou a infância. Com oito anos de idade acompanha a mãe para Castelo Branco, e, em 1932, vão viver para Lisboa. Neste mesmo ano, termina os estudos primários que iniciara na aldeia natal. Em 1938, envia uma carta a António Botto, com alguns poemas, manifestando o desejo de o conhecer; momento particularmente importante, pois é nesse encontro com Botto que um amigo deste revela a Eugénio de Andrade a poesia de Fernando Pessoa, origem de um fascínio ilimitado. O conhecimento da literatura do autor da Mensagem será determinante para a afirmação de um estilo individual numa direção oposta à poética pessoana, naquilo em que esta se mostra distanciada da exaltação do sensualismo, da afirmação da corporalidade — vetores decisivos no trajeto poético de Eugénio de Andrade. Em 1942, dedicará o seu primeiro livro à memória de Pessoa. Outra influência marcante, nesses anos de formação, será a poesia de Camilo Pessanha. Este autor encarna o papel de mestre, sintetizando algumas das linhas idealisticamente perseguidas na poética eugeniana, como a musicalidade e a aguda consciência de que a poesia é ofício de artesão.

É no ano de 1939 que, incitado por António Botto, publica uma plaqueta intitulada Narciso, o seu primeiro poema, ainda com o nome civil (José Fontinhas). Três anos depois é dado à estampa o primeiro livro, Adolescente (já com o pseudónimo), que, apesar de ter sido bem acolhido por algumas notas críticas na imprensa, seria posteriormente, por razões de ordem estética, renegado pelo autor. Esta posição estender-se-á ao seu segundo livro, Pureza, publicado em 1945. Bastante mais tarde, em 1977, numa edição de conjunto da sua obra, resgatará dez poemas daqueles dois livros, reunindo-os sob o título de Primeiros Poemas.


Em 1943, Eugénio de Andrade instala-se na cidade de Coimbra. Torna-se amigo de Afonso Duarte, Carlos de Oliveira, Eduardo Lourenço e Miguel Torga; publica, em 1946, uma Antologia Poética de García Lorca. Regressa a Lisboa no final desse mesmo ano e, em 1947, ingressa no funcionalismo público. Publica em 1948 aquele que viria a ser o seu livro de consagração e o mais reeditado dos seus textos: As Mãos e os Frutos. Por essa altura faz amizade e convive com outros poetas como Mário Cesariny e Sophia de Mello Breyner Andresen. Fixa residência no Porto em 1950, onde passará a desempenhar as funções de inspetor dos Serviços Médico-Sociais até 1983, quando se reforma. Em 1956 morre a mãe, figura central na sua poesia, em cuja memória publica, dois anos depois, o livro Coração do Dia. Datam dos anos 50 os contactos pessoais com alguns poetas espanhóis da geração de 27 e a amizade com Teixeira de Pascoaes e Jorge de Sena. Além dos títulos já mencionados, publica As Palavras Interditas no ano de 1951; Até Amanhã, em 1956, e Mar de Setembro, em 1961.


Eugénio de Andrade em 1998 -  foto Alfredo Cunha
É de assinalar um grande interregno na sua produção poética após a publicação de Ostinato Rigore (1964); só no final de 1971 dá à estampa novo volume de poemas: Obscuro Domínio. A interrupção é importante do ponto de vista da linha evolutiva da obra; trata-se de um momento fulcral no sentido de uma viragem que resulta na amplificação da regularidade, que vai de As Mãos e os Frutos até Ostinato Rigore, em concreto ao nível das gamas lexicais e semânticas. A partir daqui, retoma o ritmo regular que vinha imprimindo à sua obra. Esta revelará contornos cada vez mais peculiares que denotam uma aguda consciência do percurso que se vai construindo: um profundo sentido de renovação, de diferença dentro de uma nítida linha de continuidades. O que já se verificava entre os livros publicados na primeira fase; daí que os contidos poemas de um livro como Até Amanhã, em relação ao qual com propriedade se pode falar de claridade apolínea, difiram dos poemas do livro anterior As Palavras Interditas, poemas mais extensos, marcados por uma imagética próxima de alguns textos dos poetas surrealistas. Com a publicação de Obscuro Domínio torna-se muito acurada, da parte do poeta, a necessidade de prosseguir no alargamento do círculo, o que passa por uma amplificação do espectro semântico. Nos últimos anos, a linha que vem traçando para a sua poética projeta um intencional caminho para o concreto, para o real. Um significativo gesto, neste sentido, é aquele que, em 1977, o leva a reabilitar poemas dos primeiros livros rejeitados. À medida que se aproxima do fim, vemo-lo mais atento a essa produção com o propósito claro de fundamentar a “tese” de que o real sempre esteve presente, de que a fundação da poesia assenta no real.

Numa segunda fase, continuam a encontrar-se momentos tão diferentes como quando se confronta Véspera da Água (1973) com Limiar dos Pássaros, publicado em 1976. Este livro configura, no conjunto da produção poética de Eugénio de Andrade, uma espécie de nó onde se entrelaçam os principais núcleos de ressonância autobiográfica, texto denso do mais radical e perturbante olhar sobre esses núcleos. Outros livros apresentam assinaláveis marcas diferenciadoras dentro da continuidade estilística, podendo alguns deles ser aproximados por afinidades de diversa ordem, nomeadamente estruturais, caso de Memória doutro Rio (1978) e de Vertentes do Olhar (1987), onde ocorre uma comum matriz de narrativização dos poemas em prosa. Matéria Solar (1980) é um livro cujo metaforismo fulgurante se encontra próximo da equilibrada expressão de apaziguamento que irradia em Branco no Branco (1984). E se em O Peso da Sombra (1982) é onde mais notoriamente se manifesta a melancolia e a aguda consciência da passagem do tempo com seus efeitos sobre o corpo, a partir de O Outro Nome da Terra (1988) e Rente ao Dizer (1992) depara-se com um progressivo caminhar para o despojamento da expressão, aliado a uma atenção sábia às pequenas coisas da vida, às fulgurações da palavra, à cintilação das sílabas.


Eugénio de Andrade - foto: (...)
Existe uma tendência manifesta para se identificar Eugénio de Andrade com alguns poemas antológicos, retirados na sua maioria dos primeiros livros (“Green God”, “Adeus”, “Os amantes sem dinheiro”, “As palavras interditas”, “Poema à mãe”, “Urgentemente”, “Litania”, “As palavras”, “Pequena elegia de Setembro”), assim como com alguns desses livros, como por exemplo, As Mãos e os Frutos ou As Palavras Interditas. A partir da década de 90, fomos assistindo, da parte do poeta, a um curioso esforço de correção dessa tendência. Se, nas sessões públicas, deu um maior destaque à última poesia, mais significativa será a inscrição do gesto em antologias organizadas por si, coletâneas que concedem um maior espaço aos poemas da última fase, como é o caso da antologia 30 poemas (Fundação Eugénio de Andrade, 1993). Quando aparentemente parece retomar os mesmos procedimentos retórico-estilísticos e composicionais, esta poesia revela “novas direções” dentro da uma espantosa linha de coerência interna.

Os últimos livros (Ofício de Paciência, 1994; O Sal da Língua, 1995; Pequeno Formato, 1997; Os Lugares do Lume, 1998; Os Sulcos da Sede, 2001) vêm confirmar a busca incessante de uma linguagem transparente face à pulsação do real quotidiano.

Em 1974, publicou Escrita da Terra e Outros Epitáfios, livro que foi sendo continuamente ampliado, ao longo dos anos, até ao seu desdobramento em volumes diferenciados (Escrita da Terra, 5ª edição, 1983; Homenagens e Outros Epitáfios, 8ª edição, 1993). A obra poética de Eugénio de Andrade encontra-se traduzida em diversas línguas (a seguir a Pessoa é o poeta português mais traduzido).

Eugénio de Andrade revela-se igualmente um notável prosador. Publicou três livros em prosa: Rosto Precário (1979), Os Afluentes do Silêncio (1968), À Sombra da Memória (1993). No primeiro, para além das poéticas explícitas, incorpora um conjunto de entrevistas apuradamente reescritas numa direção que, como afirma Vasco Graça Moura, permite “organizar uma matriz para os traços possíveis de um retrato do escritor, espécie de Narciso espelhando-se complacentemente na pose da sua própria arte poética e na sua oficina”. Nos outros dois livros, encontramos textos sobre poetas, prosadores, pintores, escultores, arquitetos, fotógrafos, músicos, sobre as cidades e regiões que conheceu bem. Todas as observações e leituras surgem impregnadas da vivência autobiográfica, e em praticamente todos esses textos encontramos traços que espelham a própria poética autoral.


Eugénio de Andrade - foto: (...)
Em 1976, Eugénio de Andrade publica História da Égua Branca uma narrativa para crianças, onde se podem encontrar traços que permitem falar de um diálogo com a obra poética. Essa sintonia torna a acontecer com o livro Aquela Nuvem e Outras (1986), pequeno volume que agrupa um conjunto de poemas dedicados ao afilhado, Miguel, que foram sendo escritos à medida que este ia crescendo.

No domínio da tradução, a sua bibliografia inclui poemas e textos dramáticos de Lorca, uma tradução das Cartas Portuguesas atribuídas a Mariana Alcoforado, uma edição de Poemas e Fragmentos de Safo, e um livro com o título: Trocar de Rosa, que reúne traduções de poetas contemporâneos.

O poeta organizou também diversas antologias, muitas delas de considerável êxito editorial, como foi o caso da Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, publicada em 1999; na fase final, organizou outra antologia panorâmica: Poemas Portugueses para a Juventude, publicada no ano de 2002. Assinalem-se também as recolhas de poemas de autores canónicos reunidos nos seguintes volumes: Versos e Alguma Prosa de Luís de Camões, 1972; Fernando Pessoa, Poesias Escolhidas, 1995; Sonetos de Luís de Camões, 2000. Em torno da poesia erótica portuguesa organizou: Variações sobre um Corpo (1972) e Eros de Passagem. Poesia Erótica Contemporânea (1982). Outro domínio de incidência dos volumes antológicos organizados por Eugénio de Andrade é o das recolhas de textos literários sobre cidades e regiões, como por exemplo: Daqui Houve Nome Portugal (1968), antologia consagrada ao Porto; Memórias de Alegria (1971), antologia que reúne textos sobre Coimbra; ou ainda Alentejo não tem Sombra: Antologia de Poesia Contemporânea sobre o Alentejo (1982). Para além destas recolhas, o poeta organizou algumas antologias com textos seus: Antologia Breve, 1972 (com sucessivas reedições atualizadas); A Cidade de Garrett, 1993; Chuva sobre o rosto, 1976; Coração Habitado, 1983; Com o Sol em cada Sílaba, 1991; Os Dóceis Animais, 2003.

Em 1994, deixa a exígua morada na Rua Duque de Palmela, onde viveu durante décadas, e passa a viver numa casa, apoiada pela Câmara do Porto, onde funciona uma Fundação com o seu nome. Foi nesta casa, no Passeio Alegre, na Foz do Douro, que faleceu em 13 de junho de 2005.


Eugénio de Andrade - foto: (...)
Eugénio de Andrade sagrou-se à poesia como uma espécie de monge que vê no poema a via da redenção. Afabilidade e rudeza, ascetismo e hedonismo nele coabitam sem qualquer espécie de tensão. O encanto desta poesia capaz de suscitar uma emoção tão viva provém em grande medida da extraordinária harmonia (“aliança primogénita entre a palavra e a música”) encontrada no corpo do poema. Torna real o símile da corporalidade, tornando a língua mais maleável.


O poeta de Ostinato Rigore insere-se na tradição dos poetas artesãos, estatuto que para si mesmo reivindica. A recorrente insistência na afirmação do princípio orientador que o faz definir-se como poeta artesão tem óbvias implicações quanto ao rigor, observado no plano das micro-estruturas fónico-rítmicas e composicionais, mas também ao nível da conformação macro-estrutural de cada poema, de cada livro. Esta atitude traz consigo as mais fundas consequências face ao olhar vigilante exercido sobre a obra globalmente considerada, o que se torna cada vez mais notório nos últimos livros. Um núcleo restrito de obsessões configura o seu universo poético, recorrências que o poeta sintetiza nestas palavras: “fluir do tempo num jogo de luzes e de sombra; a ascensão e declínio de Eros, que não pode reduzir-se meramente à sexualidade; a descoberta do próprio rosto, entre os muitos que nos impõem; a dignificação do homem, num mundo mais empenhado em negar-lhe o corpo do que em negar-lhe a alma — preocupações maiores, ao que parece, da minha poesia, sem esquecer a face acolhedora e materna extensiva a tanta imagem de vida instintivamente feliz e aberta” (Rosto Precário). O que se observa na obra é a inter-relação destes valores que conformam a intrincada constelação de temas e motivos, de metáforas e imagens multiplicando-se incessantemente sob um efeito caleidoscópico.
:: Fonte: Eugénio de Andrade, por Carlos Mendes de Sousa. In: Instituto Camões/Centro Virtual Camões. Disponível no link. (acessado em 25.05.2015).


Vastos campos
Vou fazer-te uma confidência, talvez tenha já começado a envelhecer e o desejo, esse cão, ladra-me agora menos à porta. Nunca precisei de frequentar curandeiros da alma para saber como são vastos os campos do delírio. Agora vou sentar-me no jardim, estou cansado, Setembro foi mês de venenosas claridades, mas esta noite, para minha alegria, a terra vai arder comigo. Até ao fim. 
- Eugénio de Andrade, em "Memória doutro Rio". 1978.


Eugénio de Andrade - foto: José Rocha/Arquivo

OBRA DE EUGÉNIO DE ANDRADE
Poesia
:: Adolescente. (obra renegada pelo autor). 1942.
:: Pureza. 1945. 
:: As mãos e os frutos. 1948. 
Eugénio de Andrade, por Carlos Carneiro 1946
:: Os amantes sem dinheiro. 1950. 
:: As palavras interditas. 1951. 
:: Até amanhã. [desenhos de Jean Cocteau]. Lisboa: Guimarães, 1956. 
:: Coração do dia. 1958. 
:: Mar de setembro. Porto: Imprensa Portuguesa, 1961. 
:: Ostinato rigore. 1964.
:: Obscuro domínio. 1971. 
:: Véspera de água. 1973. 
:: Escrita da terra. 1974. 
:: Homenagens e outros epitáfios. 1974; Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 1993.
:: Limiar dos pássaros. Porto: Limiar, 1976.
:: Chuva sobre o rosto. 1976.
:: Primeiros poemas. 1977.
:: Memória doutro Rio. 1978.
:: Matéria solar. Porto: Limiar, 1980.
:: O peso da sombra. Porto: Limiar, 1982.
:: Coração habitado: poemas. [desenhos do escultor José Rodrigues]. Porto : O Oiro do Dia, 1983.
:: Branco no branco. 1984.
:: O outro nome da terra. 1988.
:: Corpo de amor[ilustrações José Rodrigues]..(Coleção livro Cartas). Sintra: Colares Editora, 1992.  
:: Poesia, terra de minha mãe. 1992. 
:: Rente ao dizer. 1992. 
:: Contra a obscuridade. 1992.
:: Ser dá trabalho. 1993. 
:: Ofício de paciênciaPorto: Fundação Eugénio de Andrade, 1994.
:: O sal da língua. 1995.
:: Pequeno formato. 1997.
:: Os lugares do lumePorto: Fundação Eugénio de Andrade, 1998.
:: Os sulcos da sede. 1999.

Poesia reunida
:: Antologia: 1945-1961. 1961.
:: Poemas: 1945-1965. 1966.
:: Antologia breve. 1972; Porto: Limiar, 1985.
:: Poesia. (Poesia Reunida). 2000.
:: Sete Livros, Sete Retratos. (Poesia Reunida), 2002.
:: Poesia. 2ª ed., revista e acrescentada. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005.

Prosa
Eugénio de Andrade, por Carlos Carneiro 1953
:: Os afluentes do silêncio. Porto: Editorial Inova, 1968. 
:: Rosto precário. Porto: Limiar, 1979. 
:: A Domingos Peres das Eiras, com umas violetas. 1986. 
:: Vertentes do olhar. 1987.
:: À sombra da memória. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 1993.
:: A cidade de Garrett. 1993.
:: Pequeno caderno do oriente. 2002.

Infanto-juvenil
:: História da égua brancaPorto: Edições Asa, 1976.
:: Aquela nuvem e outras.1986.

Ensaios e outros textos
:: Porto: os sulcos do olhar. [fotografia Dario Gonçalves; aquarelas Júlio Resende]. Lisboa: Edições O Jornal, 1988, 139p.
:: As mãos e os frutos para canto e piano – sobre poemas de Eugénio de Andrade. [Fernando Lopes Graça]. Lisboa: Musicoteca, 2000.

Antologias
:: Poesia e Prosa: 1940-1979.  Vol. I. 1980.
:: Poesia em Verso e Prosa. 1980.
:: Poesia e Prosa. Vol. I. Lisboa: O Jornal; Limiar,  1990.
:: Poesia e Prosa. Vol. II. Lisboa: O Jornal; Limiar, 1990.


Antologias [seleção, organização e prefácio]
:: Daqui houve nome Portugal: antologia de verso e prosa sobre o Porto. [organização e prefácio de Eugénio de Andrade].3ª ed.,aumentada. Porto: O Oiro do Dia, 1968.
:: Variações sobre um corpo: antologia de poesia erótica contemporânea. [seleção e prefácio de Eugénio de Andrade; desenhos de José Rodrigues]. Porto: Inova, imp.

1973.
:: Alentejo não tem Sombra: Antologia de poesia contemporânea sobre o Alentejo. 1982.
:: Fernando Pessoa: poesias escolhidas. 1995.
:: Antologia pessoal da Poesia Portuguesa. 1999.
:: Sonetos de Luís de Camões. 2000.
:: Poemas Portugueses para a Juventude. 2002.


Traduções realizadas por Eugénio de Andrade
:: Poemas de Garcia Lorca.1946.
:: Cartas Portuguesas. [atribuídas a Mariana Alcoforado]. 1969.
:: Poemas e fragmentos de Safo.  1974.
:: Trocar de Rosa. 1980.


EUGÊNIO DE ANDRADE - OBRA PUBLICADA NO BRASIL
:: Poemas de Eugénio de Andrade. [seleção, estudo e notas de Arnaldo Saraiva]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

As nuvens
Hei-de aprender um ofício de que goste, há tão poucos, talvez carpinteiro, ou pedreiro. Construiria uma casa neste chão de areia com pedras húmidas, lisas, ou cheias de limos, frias, são tão bonitas, com seus veios cruzando-se, ou afastando-se de costas uns para os outros. Havia de meter-me por esses miúdos caminhos de chibas para ver, ao fim da tarde, chegar os saltimbancos em toda a sua glória, que me apontam as nuvens lentas, muito brancas, afastando-se. 
- Eugénio de Andrade, em "Memória doutro Rio". 1978.


Eugénio de Andrade, o Poeta' - Biblioteca Municipal Eugénio de Andrade - Fundão,
 pintura de Isabel Nunes

POEMAS ESCOLHIDOS DE EUGÉNIO DE ANDRADE

A figueira
Este poema começa no verão,
os ramos da figueira a rasar
a terra convidam a estender-me
à sua sombra. Nela
me refugiava como num rio.
A mãe ralhava: A sombra
da figueira é maligna, dizia.
Eu não acreditava, bem sabia
como cintilavam maduros e abertos
seus frutos aos dentes matinais.
Ali esperei por essas coisas
reservadas aos sonhos. Uma flauta
longínqua tocava numa écloga
apenas lida. A poesia roçava-
-me o corpo desperto até ao osso,
procurava-me com tal evidência
que eu sofria por não poder dar-lhe
figura: pernas, braços, olhos, boca.
Mas naquele céu verde de Agosto
apenas me roçava, e partia.
- Eugénio de Andrade, em "Poesia". [Posfácio de Arnaldo Saraiva]. 2ª ed., revista e acrescentada Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 559.


A ilha
Tanta palavra para chegar a ti, 
tanta palavra, 
sem nenhuma alcançar 
entre as ruínas 
do delírio a ilha, 
sempre mudando 
de forma, de lugar, estremecida 
chama, preguiçosa 
vaga fugidia 
do mar de Ulisses cor de vinho. 
- Eugénio de Andrade, em "O ofício de paciência". 1994.



A música
Eugénio de Andrade (estudo), por Durdil 1941 
Álamos —
música
de matutina cal.
Doces vogais
de sombra e água
num verão de fulvos
lentos animais.
Calhandra matinal
no ar
feliz de junho.
Acidulada
música de cardos.
Música do fogo
em redor dos lábios.
Desatada
à roda da cintura.
Entre as pernas,
junta.
Música
das primeiras chuvas
sobre o feno.
Só aroma.
Abelha de água.
Regaço
onde o lume breve
de uma romã brilha.
Música, levai-me:
Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?
- Eugénio de Andrade, em "Obscuro Domínio", 1972.


A pedra
A pedra. Sou-lhe fiel pelo aroma. 
Vim de longe para tocar o fogo 
da sua geometria sem fronteiras. 
Pedra viva. Ou melhor: acariciada. 
Pedra profunda, chamada pelo sol, 
num voo sem fim, sempre parada.  
- Eugénio de Andrade, em "Pequeno formato". 1997.


Eugénio de Andrade, por Martins Correia 1959
A pequena pátria
A pequena pátria; a do pão; 
a da água; 
a da ternura, tanta vez 
envergonhada; 
a de nenhum orgulho nem humildade; 
a que não cercava de muros 
o jardim nem roubava 
aos olhos o desajeitado voo 
das cegonhas; a do cheiro quente 
e acidulado da urina 
dos cavalos; a dos amieiros 
à sombra onde aprendi 
que o sexo se compartilhava; 
a pequena pátria da alma e do estrume 
suculento morno mole; 
a da flor múltipla e tão amada 
do girassol. 
- Eugénio de Andrade, em "Os lugares do lume". 1998.


Adágio
O Outono é isto – 
apodrecer de um fruto 
entre folhas esquecido. 
Água escorrendo, 
quem sabe donde, 
ocasional e fria 
e sem sentido. 
- Eugénio de Andrade, em "Primeiros poemas". 1977.


Antes de saber
Até onde os dedos tocam o quente 
do barro a mão sabe 
antes de saber. 
É um saber mais vivo, um saber 
de ave: águia cegonha falcão, 
animais quase no fim 
como o lume destes dias. 
Testemunhar a favor do lince 
é nossa obrigação. 
Por ser azul. 
- Eugénio de Andrade, em "Ofício de paciência". 1994.


Eugénio de Andrade, por Dordio Gomes 1960
Aos jacarandás de Lisboa
São eles que anunciam o verão.
Não sei doutra glória, doutro
paraíso: à sua entrada os jacarandás
estão em flor, um de cada lado.
E um sorriso, tranquila morada,
à minha espera.
O espaço a toda a roda
multiplica os seus espelhos, abre
varandas para o mar.
É como nos sonhos mais pueris:
posso voar quase rente
às nuvens altas — irmão dos pássaros —,
perder-me no ar.
- Eugénio de Andrade, do livro "Os sulcos da sede (2001)"/em "Poesia". [Posfácio de Arnaldo Saraiva]. 2ª ed., revista e acrescentada Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 582.


Apenas um corpo
Respira. Um corpo horizontal,
tangível, respira.
Um corpo nu, divino,
respira, ondula, infatigável.

Amorosamente toco o que resta dos deuses.
As mãos seguem a inclinação
do peito e tremem,
pesadas de desejo.

Um rio interior aguarda.
Aguarda um relâmpago,
um raio de sol,
outro corpo.

Se encosto o ouvido à sua nudez,
uma música sobe,
ergue-se do sangue,
prolonga outra música.

Um novo corpo nasce,
nasce dessa música que não cessa,
desse bosque rumoroso de luz,
debaixo do meu corpo desvelado.
- Eugénio de Andrade, em "Até Amanhã", 1956.


Eugénio de Andrade, por Laureano Ribatua
 (mascara de barro 1962)
Arrepio na tarde
Não sei quem, nem em que lugar, 
mas alguém me deve ter morrido. 
Senti essa morte num arrepio da tarde. 
Qualquer amigo, um dos vários 
que não conheço e só a poesia 
sustenta. Talvez a morte fosse 
outra: um pequeno réptil 
no sol súbito e quente de Março 
esmagado por pancada certeira; 
um cão atropelado por um bruto 
que, ao volante, se julga um deus 
de arrabalde, com sucesso garantido 
junto de três ou quatro putas de turno. 
Talvez a de uma estrela, porque também 
elas morrem, também elas morrem. 
- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.


Árvores
Sem fadiga, as árvores regressam 
ao poema. Primeiro as laranjeiras, 
a seguir entram as tílias. 
Sempre estiveram perto, incapazes 
de se afastarem dos pequenos 
olhos imensos. 
À sombra dos cavalos 
podia vê-las chegar carregadas 
do seu aroma, dos seus frutos frios. 
A tarde chegava ao fim 
mas tive tempo ainda 
de as sentir, com um sorriso, aproximar. 
- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.


As amoras
O meu país sabe às amoras bravas 
no verão. 
Ninguém ignora que não é grande, 
nem inteligente, nem elegante o meu país, 
mas tem esta voz doce 
de quem acorda cedo para cantar nas silvas. 
Raramente falei do meu país, talvez 
nem goste dele, mas quando um amigo 
me traz amoras bravas 
os seus muros parecem-me brancos, 
reparo que também no meu país o céu é azul.
- Eugénio de Andrade, em "O outro nome da terra". 1988.


Eugénio de Andrade, por Lagoa Henriques Fão 1965
As maças
Da alma só sei o que sabe o corpo: 
onde a esperança e a graça 
aspiram ao ardor 
da chama é a morada do homem. 
Vê como ardem as maçãs 
na frágil luz de Inverno. 
Uma casa devia ser 
assim: brilhar ao crepúsculo 
sem usura nem vileza 
com as maçãs por companhia. 
Assim: limpa, madura. 
- Eugénio de Andrade, em "Ofício de paciência". 1994.


As palavras
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
- Eugénio de Andrade, em "Coração do dia". 1958.


As razões do mundo
Eugénio de Andrade, por Armando Alves 1970
As razões do mundo 
não são exactamente as tuas razões. 
Viver de mãos acesas não é fácil, 
viver é iluminar 

de luz rasante a espessura do corpo, 
a cegueira do muro. 
Esse gosto a sangue 
que trazia a primavera, se primavera havia, 

não conduz à coroa do lume. 
Os negros lençóis da água, 
o excremento dos corvos marinhos 
fazem parte da tua agonia. 

E um sabor a sémen 
que sempre a maresia traz consigo. 
- Eugénio de Andrade, em "Branco no branco". 1984.


Cada coisa
Cada coisa tem o seu fulgor, 
a sua música. 
Na laranja madura canta o sol, 
na neve o melro azul. 
Não só as coisas, 
os próprios animais 
brilham de uma luz acariciada; 
quando o inverno 
se aproxima dos seus olhos 
a transparência das estrelas 
torna-se fonte da sua respiração. 
Só isso faz 
com que durem ainda. 
Assim o coração
- Eugénio de Andrade, em "Sal da língua". 1995.


Canção breve
Tudo me prende à terra onde me dei: 
o rio subitamente adolescente, 
a luz tropeçando nas esquinas, 
as areias onde ardi impaciente. 

Tudo me prende do mesmo triste amor 
que há em saber que a vida pouco dura, 
e nela ponho a esperança e o calor 
de uns dedos com restos de ternura. 

Dizem que há outros céus e outras luas 
e outros olhos densos de alegria, 
mas eu sou destas casas, destas ruas, 
deste amor a escorrer melancolia. 
- Eugénio de Andrade, em "Os amantes sem dinheiro". 1950.


Cantas...
Cantas. E fica a vida suspensa. 
É como se um rio cantasse: 
em redor é tudo teu; 
mas quando cessa o teu canto 
o silêncio é todo meu. 
- Eugénio de Andrade, em "As mãos e os frutos". 1948.


Eugénio de Andrade, por Julio Resende 1976
Chuva de março
A chuva detrás dos vidros,
a chuva de março,
acesa até aos lábios, dança.
Mas a maravilha
não é a primavera chegar assim
como se não fora nada,
a maravilha são os versos
de Williams
sobre a rasteira e amarela
flor da mostarda.
- Eugénio de Andrade,em "Poesia". [Posfácio de Arnaldo Saraiva]. 2ª ed., revista e acrescentada Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 459.


Coral
É um dos corais de Leipzig,
o quarto. Sem sabermos como, desceu
ao chão da alma. A música
é este abismo, esta queda
no escuro. Com o nosso corpo
tece a sua alegria,
faz a claridade
dos bosques com a nossa tristeza.
Pela sua mão conhecemos a sede,
o abandono, a morte. Mas também


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