Crônicas, A Gazeta - Vitória, ES

/
0 Comments

ERA UMA VEZ UM RIO


No Museu de História Militar de Dresden, Alemanha, é possível ver a fotografia das muitas atrocidades ocorridas na Primeira Guerra Mundial. Soldados imundos, entrincheirados em valas estreitas, sem sistema de esgoto e sem higiene, tomam banho em poças de lama para aliviar a sujeira. O museu oferece aos visitantes uma experiência terrível. É possível sentir o cheiro de moribundos, de fossas coletivas abertas, de pessoas mortas há dias, de terra úmida, de suor e de outros elementos, pelo simples ato de apertar um botão que aciona um tubo de onde se evola um nauseabundo “cheiro de guerra”. Essa experiência, que poucos turistas suportam, dá uma dimensão diminuta da imensa miséria em que a estupidez e a ganância podem mergulhar a humanidade.E é desses registros de horror que me lembro diante de outros bem mais recentes, que exibem as consequências do rompimento de duas barragens da mineradora Samarco. Impossível ficar indiferente diante das imagens daquela enxurrada de lama que varreu uma comunidade inteira no distrito de Bento Rodrigues e desceu à procura do curso dos rios, como um monstro que soubesse o caminho onde haveria vidas para asfixiar. Para além das pessoas, é incalculável o números de mortes de cachorros, gatos, galinhas, patos, cavalos e outros animais. Sem falar nos estragos causados à fauna e à flora.Nesse sentido, a imagem de uma tartaruga com o pescoço estirado sobre uma superfície terrosa e o casco coberto por uma camada endurecida de lama é a própria imagem das humanas estultice e insensatez. Durante estes dias de desolação, eu penso na condição quase escravocrata que sempre subjugou a atividade de mineração entre nós. Outrora, eram os acertos coloniais, que pouco se importavam com as pessoas que mourejavam na extração de ouro, pedras preciosas e metais, a serem despachados para a ostentação de reis e rainhas na Europa. Hoje, são as minas modernas, destinadas a arrancar o ferro que os minerodutos transportam para os portos de nosso litoral, onde os navios piscam sobre o mar, dia e noite à espera para levar a ao exterior riquezas que nem sempre são aproveitadas a favor do país. O lucro de empresas e acionistas por vezes se torna mais importante de que as anônimas criaturas e os sistemas ecológicos que sustentam a base de todo esse processo. Assim, através de séculos, travestido de outras roupagens, o saque ao Brasil é o mesmo.Confesso a vocês que é difícil expressar em tão poucas linhas a ira e a dor que estou sentindo.“ Estrelas não são bem-vindas agora; apaguem todas elas/ Embrulhem a lua e desmontem o sol/Esvaziem o oceano e varram a floresta/ Pois nada pode agora lembrar um ar de festa”, como diz o poeta W.H. Auden, em “Funeral Blues”.Aquela tartaruga morta é do Parque Estadual do Rio Doce, a maior área de Mata Atlântica de Minas Gerais. E o Rio Doce também está morto. Atingido pelo poder destrutivo da lama infernal. Com o Rio Doce morre também um pouco de nossas alegrias e de nossas esperanças. “Era uma vez um rio. Um rio tão longo, tão largo e tão impetuoso que, quando chegava à foz, suas águas doces continuavam avançando por muitas léguas adentro das águas salgadas do mar. Por isso deram-lhe o nome de Doce”. Foi o que eu escrevi aqui mesmo, há poucos meses, neste espaço em que exercito as palavras. Era uma vez um rio que pulsava, dividindo o Espírito Santo em dois territórios, norte e sul, que se cruzavam em um ponto qualquer de transposição sobre sua superfície de águas. Era uma vez um rio. Um rio que era nosso. E foi assassinado.

Queridas e queridos, minha crônica desta segunda. Caderno Dois. Jornal A Gazeta.

  

===============================================================

ELEGIA PARA AS ELEGIAS



Abro o calendário e vejo que a data de publicação desta crônica cai no Dia dos Mortos. Não é fácil para uma mortal escrever nesta data, consagrada à tristeza, ao luto e à melancolia. O melhor seria ficar em silêncio, recolher-me entre minhas lembranças. Pois as lembranças e o silêncio são refúgios seguros (ou quase), diante da inexorabilidade da morte. A última vez que me lembro de ter discutido a mortalidade das criaturas humanas foi quando falei sobre “A morte de Ivan Ilich”, de Liv Tolstói, para uma plateia de jovens estudantes. Nessa obra-prima, que Vladimir Nabokov considera “a mais artística, mais perfeita e de mais sofisticada realização da história mundial” acompanhamos um homem que, pouco a pouco, mergulha no destino comum a nós todos: o fim. Reconheço as comoventes esperanças com que as religiões, das mais variadas maneiras, atravessam essa ideia de fim. Mas não é disso que quero tratar. Voltemos, então, a Tolstói e a sua novela. Em breves 85 páginas, a gente aprende que não é a extensão do relato e nem a grossura de um livro que fazem a sua grandeza. É mesmo difícil encontrar, em toda a longa história da literatura, um retrato tão perfeito de uma personagem e de seu desespero diante da morte. “A vida de Ivan Ilitch era das mais simples, das mais vulgares e, contudo, das mais terríveis. Juiz do Tribunal, falecia aos 45 anos”. No entanto será justamente quando está doente, preso ao leito depois de uma queda de consequências daninhas, que a existência de Ivan Ilitch se revelará mais autêntica e livre. Diante da morte iminente, ele percebe que viveu debaixo de falsas aparências. Clamava por carinho e piedade. Sofria em silêncio. Acalentava o desejo de ser querido e cuidado como se fosse uma criança. “ Sem que ninguém visse, chorava a sua impotência, a sua terrível solidão, a crueldade de Deus, que o abandonava”. É assim que Tolstói faz da história de Ilitch uma biografia da humanidade, em que apenas a perspectiva da morte dá a dimensão exata das coisas. Mas a morte permanece tabu. Na cultura ocidental, pelo menos, a morte é um horror a não ser nomeado, a ser evitado. Basta ver os zumbis, os esqueletos, os corpos monstruosos e as aberrações que perseguem os vivos em filmes, romances, HQs e tantas outras representações, destinadas a fortalecer os estereótipos que assombram os mortais e que exprimem sua concepção de pavor. Desse mesmo jeito atua o furor atual de parecer sempre jovem, uma tentativa dos seres humanos de esquecer a inevitável decadência e velhice que os aproxima da morte.Graças aos deuses, existem artistas, escritores e poetas que explicitam, de modo mais suave, a beleza dramática que cerca essa sorrateira senhora, que chega silenciosa e que já foi chamada de “La belle dame sans merci”, por John Keats.“Caminhas entre mortos e com eles conversas sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito”, diz Carlos Drummond de Andrade. “Ah, mas que palavras podem os vivos dizer aos mortos?”, indaga a divina Cecília Meireles. “Nenhum homem é uma ilha isolada… A morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”, responde John Donne. Mas é Rainer Maria Rilke quem melhor traduz o próprio sentimento de perda que fere meu coração neste dia: “Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo... Mas nós que de tão grandes mistérios precisamos... poderíamos passar sem eles? “. Abençoado poeta! Para esse doce consolo é que existem as elegias.

Queridas e queridos, aí está a crônica feita em homenagem ao dia de hoje. Jornal A Gazeta. Caderno 2


===============================================================

UM FESTIVAL DE CINEMA



Todos somos criadores de alguma coisa ou de alguma maneira . É isso que eu ia pensando no avião a caminho do 22 Festival de Cinema de Vitória, atendendo ao convite para integrar um júri de curta metragem.

Nessas ocasiões, sempre estou como um objeto estranho, pois que minha paixão por escrever ficção me coloca como uma estrangeira em viagem, quando me deparo com uma dessas situações de julgar filmes pelo país afora.

Ocorre que algumas criaturas são sucessivamente atravessadas pelo espanto de me verem atuando em outra área que não seja a literatura. O que desculpo totalmente, pois até eu mesma, às vezes, me esqueço de minha longa formação acadêmica em cinema.

Diplomas à parte, descubro que muitas pessoas têm dificuldade em aceitar que se possa ser múltiplo na vida. E eu sou. Para além de múltipla. Desdobrável, como diz Adélia Prado. É muito chata essa coisa de ter um rótulo apenas. Dublê de professora de cinema e escritora, tenho prazer em aceitar os chamados que me dão oportunidade de trabalhar com minha dupla profissão.

Assim é que, uma vez recebida com tanta gentileza pela equipe do Festival, me instalo no hotel, ao lado de outros jurados, cineastas, atores e atrizes vindos de todo o país. 

Diante da paisagem magnífica, com direito à vista da Curva da Jurema e ao esplendor do Mestre Álvaro, fico tranquila e me preparo para as reuniões, debates, exibições, comentários e anotações, varando a madrugada, enquanto as luzes da cidade brilham como um colar molhado debaixo da chuva. Até que em uma bela manhã o sol se abriu e o céu azulou. E foi como se Vitória quisesse mostrar várias faces aos que vinham de outros lugares. 

O Festival ocorreu com as pequenezas e grandezas de qualquer Festival. No entanto, o bom é só lembrar a parte boa. Que inclui a incrível coragem e competência da sua Diretora, Lúcia Caus, uma diligente guerreira, e de sua equipe eficiente, sustentando toda a complexidade do evento contra os ocasionais tormentos causados por eventuais incompreensões e insatisfações. E de quebra enfrentando com graça e elegância algumas insidiosas rasteiras, pequenezas e mesquinharias. Chatices que, aliás, costumam enodoar os Festivais de Cinema, dos mais grandiosos aos menores. 

Julgar nunca foi fácil. Convém cultivar com coragem a intrepidez na raiz do pensamento até atingir o momento em que é preciso tomar decisões.

Para chegar ao melhor filme foi preciso que o júri esmiuçasse todas as circunstâncias, das mais técnicas às mais emotivas, passando pela contribuição ao universo cinematográfico e pelo envolvimento com as dores, amores, alegrias e comportamentos sociais. 

Não foi tarefa tranquila, partilhada comigo pelos cineastas Rodrigo Bitti e Bertrand Lira. Nós três a dar notas a filmes vindos de todo o Brasil. Aí incluídos aqueles realizados no Espírito Santo, em condições de igualdade. Para mim, uma apaixonada pelo nosso Estado, foi particularmente espinhoso. 

Mas um júri deve atuar sem bairrismos nem protecionismos. E cumpriu-se de maneira briosa a missão. O escolhido foi “À festa, à guerra”, de Humberto Sinoti, um filme alegórico e delicioso sobre política, carnaval, minorias e acertos de conta com a sociedade de agora. Com direito à ironia, à denúncia e à crítica dos costumes atuais no Brasil.

Hoje, tenho a mente apaziguada, o coração leve e a sensação de dever cumprido com a aprendizagem desses dias de júri. E agradeço a rara felicidade de ter contribuído para tornar o Festival de Cinema de Vitória respeitado e reconhecido em todo o país.

Queridas e queridos, para vocês que gostam de ler minhas crônicas, aí vai a de hoje, publicada no Caderno Dois, do jornal A Gazeta. A foto é do filme "À festa, à guerra", de Humberto Carrão Sinoti (RJ), prêmio de melhor filme de curta metragem no 22 Festival de Vitória.

===============================================================

 

Dizem que os historiadores se baseiam em cometas e eclipses, quando querem estudar fragmentos de uma saga perdida. Fico a pensar que seria esse um notável artifício para fixar alguns episódios que a memória da gente, esgarçada pela espuma dos dias, só consegue entrever aos pedaços. Nem sei se eclipses e cometas fazem parte das minhas recordações. Porém, como uma menina criada entre os coqueiros e o vento nordeste, sei de muitas outras coisas. Sei de conchas, águas vivas, balsedos e peixes. Mas peixes, balsedos, água vivas e conchas não são instrumentais. Não me permitem recompor o mapa de outros espaços para além daqueles da Barra. Assim é que se eu quiser falar da Ilha, da primeira vez em que a vi (coisa que me ocorre para festejá-la amanhã, dia 8, em seu aniversário), terei de me aventurar por dentro do território obscuro do tempo, com suas luzes dispostas em uma fileira até o infinito. Então começo dizendo que eu vos escrevo da Ilha. A primeira vez, vista do alto-mar, ao longe, a Ilha contra o continente, tudo era como uma cadeia azul de montanhas.“Menina, aquele é o Mestre Álvaro”, falou o marinheiro apontando uma pedra à distância. A pedra alta e imensa brilhava entre pedras mais baixas. Coisa que eu, vinda de uma terra plana de águas e areias, ainda nem ainda conhecia.Um burburinho de cordas lançadas. Barquinhos em volta do pequeno navio. Uma tábua para atravessar até o cais. Desembarquei, ainda tonta daqueles quase dois dias mareados. Às vezes deixando a diminuta cabine revestida de tábuas para olhar a linha do horizonte encostando no mar; às vezes dormitando no beliche repartido com minha tia Glorinha, enquanto a chama do lampião balançava, de lá para cá, a cada batida de uma onda mais forte no casco.De quase nada mais lembro. Após o desembarque, recordo de como atravessamos a Praça com seu relógio lançado contra o céu como um totem cinzento e de como subimos a escadaria rumo à Cidade Alta. Era essa mesma escadaria que, do meu exílio, tantas vezes subo e desço em sonhos. E que eu própria, em “Memória das ruínas de Creta”, enchi de minotauros. Minotauros sofredores da luz, chagados do ruído, que se afastam do sol, se escondem no silêncio. Ainda hoje, quando retorno à Ilha, eu os vejo, disfarçados, bebendo nos bares do Centro. E, pela madrugada, estonteados de sono, erram à cata dos becos escuros que cortam as ladeiras atrás da Catedral, onde eles se abrigam e têm a ilusão de estar no labirinto. Pois é desta Ilha que, agora, vos escrevo. Não da Ilha física de Vitória, Latitude - 20° 19' 10'', Longitude -40° 20' 16''. Eu vos escrevo da Ilha dos Minotauros, situada no imaginário de minhas cartografias.E antes que alguns pragmáticos me acusem de desrespeito para com a realidade, eu explico. Desde criança me acostumei a ser apontada como uma criatura sujeita a alucinações. E nunca reclamei. Pois sei que isso é um jeito que algumas pessoas têm de para justificar o estranhamento que sentem comigo. E, afinal, não descreio das minhas alucinações. Até gosto delas. Mas são tão bobinhas! Nem chegam aos pés daqueles gloriosos delírios que impeliam à fogueira as bruxas, os místicos e a coitada da Joana D’Arc. No entanto, a elas devo a possibilidade de reordenar os acontecimentos do cotidiano para encaixá-los em alguma passagem de meus contos, romances e sei mais lá o quê. Por isso, desculpai a singeleza desta crônica ligeira. Foi escrita para ser um presente de aniversário. Mas acaba que está confeitada de coisas absurdas da imaginação.

Queridas e queridos, para vocês, minha crônica feita para o aniversário da bela Ilha/Cidade: Vitória, ES.  7 de setembro às 22:15




 

Nenhum comentário: