POEMAS ESCOLHIDOS DE RUY DUARTE DE CARVALHO

/
0 Comments




Adoço-te as costas
com licor de acácia.
Espremo-te os rins:
um favo de dem-dém.

Vou fundo em ti
feroz
e oiço-te um ai:
faz eco em mim
a voz
do meu país in-tacto.

- Ruy Duarte de Carvalho, em "Chão de oferta". Luanda: Culturang, 1972.

§  

A gravação do rosto
Na superfícia branca do deserto
na atmosfera ocre das distâncias
no verde breve da chuva de Novembro
deixei gravado meu rosto
minha mão
minha vontade e meu esperma;
prendi aos montes os gestos de entrega
cumpri as trajectórias do encontro
gravei nas águas a fúria da conquista
            da devolução do amor.

Os calcários e os granitos desta terra
foram por mim pesados.
Dei-lhes afagos
leves olhares
insónias longas
impacientes esperas.

- Ruy Duarte de Carvalho, em "Chão de oferta". Luanda: Culturang, 1972.

§ 

A terra que te ofereço 

1
Quando,
ansiosa,
pela primeira vez
pisares
a terra que te ofereço,
estarei presente
para auscultar,
no ar,
a viação suave do encontro
da lua que transportas
com a sólida
a materna nudez do horizonte.

Quando,
ansioso,
te vir a caminhar
no chão de minha oferta,
coloco,
brandamente,
em tuas mãos,
uma quinda de mel
colhido em tardes quentes
de irreversível
votação ao Sul.

2
Trago
para ti
em cada mão
aberta,
os frutos mais recentes
desse Outono
que te ofereço verde:
o mês mais farto de óleos
e ternura avulsa.
E dou-te a mão
para que possas
ver,
mais confiante,
a vastidão
sonora
de uma aurora
elaborada em espera
e reflectida
na rápida torrente
que se mede em cor.

3
Num mapa
desdobrado para ti,
eu marcarei
as rotas
que sei já
e quero dar-te:
o deslizar de um gesto,
a esteira fumegante
de um archote
aceso,
um tracejar
vermelho
de pés nus,
um corredor aberto
na savana,
um navegável
mar de plasma
quente.

- Ruy Duarte de Carvalho, em "A decisão da idade". Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1976. 

§ 
Ruy Duarte de Carvalho, 
por Fernando Campos
Canção de guerra
(Origem Kwanyama)
  
O covarde ficou
voltou para trás
agiu de acordo com a mãe.
De nós porém
bravos homens
muitos morreram
porque lutaram.

(chora a hiena chora a hiena chora)

O nosso camarada jaz no chão
não dormirá conosco.
Ali o deixamos
pernas e pés na berma da estrada
a cabeça tombada
no meio da rama.

Soldados de Nekanda
conquistadores de gado para Hayvinga
filho de Nasitai:
somos rivais em casa
pelas mulheres.
Na guerra, na floresta
somos da mesma mãe.
 

- Ruy Duarte de Carvalho, em "Ondula, savana branca". Lisboa: Sá da Costa Editora, 1982.

§ 

Chagas de salitre
Olha-me este país a esboroar-se
em chagas de salitre
e os muros, negros, dos fortes
roídos pelo vegetar
da urina e do suor
da carne virgem mandada
cavar glórias e grandeza
do outro lado do mar.
Olha-me a história de um país perdido:
marés vazantes de gente amordaçada,
a ingénua tolerância aproveitada
em carne. Pergunta ao mar,
que é manso e afaga ainda
a mesma velha costa erosionada.
Olha-me as brutas construções quadradas:
embarcadouros, depósitos de gente.
Olha-me os rios renovados de cadáveres,
os rios turvos do espesso deslizar
dos braços e das mães do meu país.
Olha-me as igrejas restauradas
sobre ruínas de propalada fé:
paredes brancas de um urgente brio
escondendo ferros de educar gentio.
Olha-me a noite herdada, nestes olhos
de um povo condenado a amassar-te o pão.
Olha-me amor, atenta podes ver
uma história de pedra a construir-se
sobre uma história morta a esboroar-se
em chagas de salitre. 

- Ruy Duarte de Carvalho, em "A decisão da idade". Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1976. 

§
 
Noção geográfica
A esses que me perguntam
donde lhes vem a direcção escolhida
e são apenas a direcção lançada
ao centro indefinido da razão;

e que empunham as armas sem saber
razão fundamental para o seu uso;
e que indecisos se erguem para indagar
a que futuro apontam

elevo a voz para dizer
das múltiplas razões para uma entrega
ao tempo de partir e edificar
as naves de arremesso

e construir uma nação sem muros
onde se expanda o eco da alegria
cavada em vossos peitos
pelo resgatar dos corpos e da cor
de encontro à bruma que ficou contida
entre os dois tempos de uma manhã morta
adonde nos jazia a decisão
e atônitos olhávamos os dias
perdidos entre a noite e sem saber-lhe o fim.

- Ruy Duarte de Carvalho, em "Lavra: poesia reunida 1970-2000." Lisboa: Edições Cotovia, 2005, p. 79. 

§ 

Profecia de Nakulenga 
(Origem Kwanyama)
 

Algo de estranho se agita nas águas
algo de estranho se arrasta na terra.
Era longe, ficou perto, agora é cá.
E o povo já foge.
Talvez até caia
um pau de omuhama

na estrada a indicar que para o rei
a morte vai chegar
a vida é breve.

Eles vêm de um país muito distante
e trazem para dizer coisas diferentes
que é preciso avaliar com atenção.
Cruzava o país e dos nobres eu via
os ricos currais.

Renovo a viagem
e que vejo agora?
Dos nobres agora não vejo os currais
mas vejo dos brancos
suas construções.
 

- Ruy Duarte de Carvalho, em "Ondula, savana branca". Lisboa: Sá da Costa Editora, 1982.

§

Venho de um sul
Eu vim ao leste 
dimensionar a noite 
em gestos largos 
que inventei no sul  
pastoreando mulolas e anharas  
claras 
como coxas recordadas em maio. 


Venho de um sul 
medido claramente 
em transparência de água fresca de amanhã. 
De um tempo circular 
liberto de estações. 
De uma nação de corpos transumantes 
confundidos 
na cor da crosta acúlea 
de um negro chão elaborado em brasa.  

- Ruy Duarte de Carvalho, em "Chão de oferta". Luanda: Culturang, 1972, p. 35.


You may also like

Nenhum comentário: