A CONTINUIDADE DOS PARQUES

/
0 Comments



Tinha começado essa crônica na noite anterior. E ela era sobre qualquer coisa bizarra que me chamou a atenção. Mas dormi (às vezes, eu preciso!). E sonhei com Cortázar.

Então, ao acordar, me lembrei que fevereiro não é só o mês do carnaval. É também o mês em que o escritor morreu. E, em fevereiro, eu nunca deixo de cumprir o ritual de homenagem a ele feito.

Ainda batida pelas águas do sono, como ele próprio diria, eu  cuido de  encaminhar minhas pobres e mal-traçadas linhas para o que já deveria ter feito.

Trato de correr contra o vento. Antes que o prazo de validade da cerimônia recorrente termine; antes que o mês de fevereiro se esvaia na espuma dos dias; antes que o grito do vigia no cesto da gávea me informe que perdi a ocasião da oferenda.

Nós que amávamos tanto a Cortázar. Nós que rondávamos por essa diminuta ilha-cidade, tomando seu santo nome em vão. Nós que nos embebedávamos de vodca, de gin e de suas palavras, a cada bar, a cada esquina, a cada calçada. E que, a cada livro dele que se anunciava aportado a Vitória, acorríamos à Âncora ou à Logos, como devotos em peregrinação.

Fernando Tatagiba, Tião Lyrio, Francisco Grijó, me atrevo a denunciá-los como participantes do culto. Que incluía tantos outros que, aqui, acolá ou seja lá em que lugar estiverem, me perdoarão por não citá-los. É que, assim de repente, minha memória traz os nomes de jovens escritores que se faziam mais próximos de mim.

Era aquela ocasião em que o doce pássaro da juventude sacudia as asas sobre nossas cabeças e em que acreditávamos na literatura, como a deusa que nos protegeria de todos os males.

Cortázar era nosso tutor. Nós o acompanhávamos, a cada romance, a cada poema, a cada livro de contos. Seguíamos seus passos, suas viagens, suas preferências, suas atitudes, suas conferências. Sabíamos as mulheres que amava, o nome de seu gato. E ele nos ensinava: “Escrever é tentar sonhar, é uma tentativa de romper barreiras. Acontece, às vezes, que, ao escrever algumas janelas se abrem.”

Quem é o diretor dos sonhos? Será que ele se importa com o que sonham os mortais?  E o que coisa é um sonho?

Minha resposta está em “A panelinha de breu”, meu pequeno romance esquecido.  Abro-o. E leio o que eu mesma escrevi: “Antes de ser uma permanência no sono, é um esquecimento. É uma lassidão repleta de imagens. Um infante que se esgueira, furtivo, da vagina materna, sob a luz escarlate de algum sol noturno, para enganar as criaturas que imaginam estar caminhando no fogo, gritam e enlouquecem e, no entanto, é apenas um sopro da brisa que ateia as chamas de uma vela posta junto a sua face. O pavio se esgota  e, então, aquele que dorme se afoga na noite de um pântano irremediável de onde a aurora o retira com o fino rosado bordão, assim que desperta” .

Penso em como Cortázar foi importante para que eu escrevesse esse livro. Penso como  ele foi importante para eu escrevesse, afinal.

Se é verdade que os que sobrevivem aos mortos olham em torno e enxergam mensagens, previsões que não foram, antes, detectadas, eu posso afirmar que o sonho que tive ontem à noite era um alerta para que eu não me esquecesse de registrar meu agradecimento.

 É o que faço, agora. Devolvendo a Cortázar as palavras que ele mesmo me deu: “A literatura é para mim uma atividade lúdica, lúdica naquele sentido que dou ao jogo, à brincadeira, mais aquilo que você já conhece bem: uma atividade erótica, uma forma de amor”.

Graças sejam dadas a você, Júlio amado, que me ensinou que escrever faz a gente  feliz.  E isso basta.

Jornal A Gazeta. 23 fevereiro 2015.
Bernadette Lyra 


You may also like

Nenhum comentário: