FILOSOFICES COM ABRICÓS

/
0 Comments

Outro dia, enquanto a tarde despencava lá fora, como as tardes costumam despencar nesta pauliceia de tons cinzas (não cinquenta, porém mais de cem), outro dia, resolvi ler um livro de filosofia. Vocês podem ficar intrigados que alguém resolva ler filosofia nesses tempos em que se diz, por vezes, que a filosofia não serve para nada. Mas é que não resisto ao charme meio decadente de certos filósofos. Sobretudo os filósofos do século XX, que se ocupam de bobices intrigantes. “Como ética, por exemplo”? Alguns céticos, eruditamente, me perguntarão. “Talvez”, responderei. Se bem que concordo com Paulo Leminski, o poeta, quando diz que toda a ética está na poesia, porque a poesia é a única resistência possível aos escolhos do cotidiano.

Deixando o amado poeta e voltando ao assunto, a tarde despencava lá fora e eu resolvi ler um livro de filosofia. Ou melhor, foi o livro de filosofia que resolveu ser lido por mim.

O caso é que dei de cara com “O elogio ao ócio”, em sua prateleira, na estante e, imediatamente, achei que ele me olhava com olhos lânguidos e pedia leitura. Tenho essa mania de achar que os livros me espreitam, como aquelas sereias que, por trás dos rochedos de Capri, espreitavam os incautos marujos do barco de Ulisses. Penso mesmo até que alguns me armam tocaias, nas quais caio como uma patinha, sem poder resistir. Assim é que, de repente, eu me vejo sentada na poltrona da sala, com um deles abertos na mão.

Devo esclarecer, no entanto, que tenho uma quedinha por “O elogio ao ócio”. Nada como uma boa dose de conhecimento inútil para dar tempero às banalidades do dia-a-dia! Vocês sabem que essas são as ideias de Bertrand Russel, ali. Adoro quando o filósofo afirma que encontrou mais sabor em abricós desde que soube de duas ou três coisas absolutamente inúteis sobre eles.

Os abricós foram cultivados na China durante a dinastia Han. Alguns reféns chineses, em poder do rei Kaniska os levaram para a Índia. De lá, as frutinhas passaram à Pérsia dentro da marmita de refugiados. E acabaram chegando ao Império Romano, no século I de nossa era. Russel conta ainda que a palavra abricó vem do latim “precoce”, pois que amadurece cedo e que lhe foi acrescentado o “a” em virtude de uma falsa etimologia. E se a gente juntar todo essas nicas de conhecimento sobre guerras, manobras, reféns, contrabandos, fronteiras, segredos de estado e invenções filológicas, ao final, o abricó passa a ter um sabor muito mais agradável.

Creio que já lhes contei isso. Foi em uma dessas crônicas que, há tão longo tempo, a cada quinzena, me dão o prazer de me encontrar com vocês, nas páginas deste jornal. Se não me falha a memória de caracol (como dizia meu saudoso mestre Guilherme dos Santos Neves), cheguei mesmo a citar os abricós que, em menina, eu catava na chácara de meu avô.

Só que os abricós das minhas lembranças nada tinham a ver com aqueles do Russel, que estão mais para as frutas a que denominamos damascos.

Os abricós da Barra eram diminutos sóis amarelos reluzindo em meio às folhagens, cheirando à maresia. Dava gosto morder as crostas endurecidas, resgatar com um “croc” a massa da polpa suave, deixar passar entre os dedos as sementes, que escapuliam, duras como marfim, escuras como a noite, lustrosas como cetim.

Posso estar sendo repetitiva. Mas isso não importa. Importa é que, através desta história de abricós, a gente descobre que o medo, a alegria, a tristeza e o amor são pequenas inutilidades acumulativas que se cruzam para dar um sabor agridoce à morte e à vida.
 
A croniquette publicada no Jornal A Gazeta


You may also like

Nenhum comentário: