O que se festeja nas festas literárias?

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Publicado em O Globo,
 
RIO – Sem moralidades, mas tratando de ser útil, no melhor sentido que essa palavra possa ter, tenho me perguntado: qual a função das feiras e eventos literários que se alastram país afora? Levam mais pessoas a ler? Nosso país ainda tão cheio de analfabetos e analfabetos funcionais, tão necessitado de uma educação para a leitura precisa desses movimentos que custam bem caro aos nossos bolsos? Pagar autores para cruzarem os quatro cantos do país e uma estrutura como a das feiras, valerá a pena no sentido de cativar público para a literatura?
 
“Talvez, mas não muito, talvez, mas quase nunca” é o que respondo com uma certa autoridade de quem trabalha com eventos há mais de duas décadas e não é somente uma agitadora cultural que sai fabricando programações literárias. Falo desde minha condição de professora de literatura, escritora com publicações na área infantil e juvenil, com ensaios sobre leitura, no mínimo, úteis e de produtora de eventos. Falo também a partir da experiência como editora e coeditora de revistas (”Poesia Sempre/Buriti”, da FBN) e diretora há quase 20 anos da Estação das Letras que criei e coordeno no Rio de Janeiro. Soma-se a essas atividades o projeto Caravanas de Escritores, que organizei recentemente para a Diretoria do Livro e da Leitura do MinC, entre tantos que venho desenvolvendo. Enfim, são muitas experiências com todos os lados dessa moeda chamada livro, da sua criação à divulgação, comercialização e leitura.
 
É preciso entender que eventos são o que o próprio nome diz: eventuais. Podem ou não acontecer, dependendo da boa vontade, da necessidade de renúncia fiscal ou marketing das empresas. Ou de verba adicional, pública ou não. Eventos não levam ninguém a ler mais ou a comprar mais livros. Eventos literários sejam eles festas, feiras, bienais com maior ou menor projeção nacional, são fenômenos de marketing. Ou seja: eventualmente ouve-se falar num produto chamado livro, em seus autores, como quem anuncia uma nova marca de refrigerante. O cidadão escuta através da mídia que livros são essenciais, que ler faz bem, acorre às feiras, as escolas se movimentam, as prefeituras distribuem o vale livro ou que nome tenha essa ajuda essencial dos órgãos envolvidos.
 
Na verdade, feiras e eventos cumprem essa missão de popularizar o objeto livro, divulgar alguns nomes da produção literária nacional e internacional, mas são, como disse acima, eventuais. E nessa afirmação não vai nenhuma crítica. São importantes? Sem dúvida! Num mundo em que a propaganda virou a alma de tudo, são essenciais. Mas não formam leitores por mais longos, bem estruturados ou completos que sejam.
 
Escrevo pela necessidade premente que temos de separar alhos de bugalhos quando o que está em jogo é a educação de um povo. E ensinar a ler é, sem dúvida, educar. E educação? Bem, educar é e sempre será ensinar a ler melhor o mundo em que vivemos. Precisamos considerar algumas questões concernentes à necessidade, no país, de medidas que levem as pessoas a valorizar mais o ato de ler livros a ponto de comprá-los, trazendo-os para o cotidiano como informação, formação, lazer.
 
Certamente é na escola que essa valoração se dá. É nela, onde ficamos — da infância à juventude — mais tempo, que essa espécie de milagre pode acontecer. É lá, com bons mestres, bons educadores e condições de ensino/aprendizagem dignas, que iremos nos tornar leitores para além do ambiente familiar. A escola precisa, portanto, responder à altura dos eventos literários e da propaganda das feiras. Nesse caso, a leitura deveria ocupar uma boa parte das grades curriculares transformando-se em matéria escolar, uma matéria artística, como música, desenho, pintura… Lúdica, mas necessária, do fundamental à universidade. Como matemática ou ciências, mas sem a obrigatoriedade daquelas e com tratamento especial. Matéria opcional, inclusive para estudantes de medicina, engenharia, física nuclear, que tanto precisam da leitura para humanizar mais suas práticas científicas.
Cabe a nós, educadores e produtores culturais, pensar que gosto pela leitura é hábito e hábito se adquire no cotidiano, como escovar os dentes, comprar uma entrada para o teatro. Nossa fome de gastar e consumir tomaria, certamente, outras direções, entre elas adquirir mais informação, ampliar o imaginário, tornando-nos mais autônomos, independentes. Talvez só então possamos descobrir as bibliotecas, acessar Google e quejandos de modo mais inteligente. Só então, talvez, a propaganda deixe de ser a alma dos negócios evoluindo em seus objetivos.
 
Essa conversa é longa, controversa, contraditória, mas nunca irreal e estamos, de fato, precisando dela. Talvez oficializar uma cadeira de leitura existente em todos os níveis escolares, inclusive no universitário, independentemente do curso ou especialização. Na mesa, a discussão.
 
*Suzana Vargas é escritora, professora de Literatura, mestre em Teoria Literária pela UFRJ, criadora e diretora da Estação das Letras, no Rio de Janeiro


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