QUANDO EU SERIA MARIA

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“Sempre ocorre uma certa emoção do tempo redescoberto” – essa frase de Vladimir Nabokov ilustra, à perfeição, uma sensação de déjà vu e um frêmito delicioso com que me deparo, a cada vez que, em algum evento cultural, o prenome Maria aparece junto com Bernadette, em meu nome. 
 
Ocorre que já havia me acostumado a reservar o meu nome completo de batismo para os papeis oficiais de trabalho, fora daqueles que registram meu fazer de escritora. 
 
É que todo escritor tem essa mania de ter seu próprio duplo e nomeá-lo da maneira mais breve possível. Por que? Vocês perguntarão. Uma primeira causa é que, talvez, a brevidade contribua para a fixação. E tal fato descomplica os livreiros e os leitores. Porém, muito mais de que isso, essas trocas e encurtamentos dão ao autor a ilusão de que ele é uma criatura estranha a si mesmo. 
 
Quem não se lembra da frase famosa “Je est un autre” (eu é um outro), com que Rimbaud denunciava a estupidez dos que acreditam que exista um “eu” real? E pegando carona, eu diria que ele, Arthur, o belo poeta que rompeu com a poesia e virou mercador de armas e café na Etiópia, estava zombando daqueles que acreditam piamente que um nome registrado em cartório confere individualidade a alguém.
 
Bem, sem ironias nem julgamentos tolos, o certo é que os escritores gostam de ser “um outro”. 
 
Ser “um outro” quer dizer que acreditamos que as palavras que brotam de nossa escritura são mais verdadeiras de que aquelas com as quais temos a ilusão de que é possível controlar o que se passa ao nosso redor, no dia-a-dia. Ou seja, ser “um outro” é ter o poder de criar, com as palavras, um mundo misterioso e irreal, tornado real pela força da fantasia.
 
Alguns poetas, contistas ou romancistas chegam ao cúmulo de se atribuir pseudônimos ou heterônimos, incorporando-os às suas personagens e histórias, como se tudo em seu universo de criação também não passasse de uma ficção. Vocês estão cansados de saber que Fernando Pessoa se desdobrava em três: Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caieiros. Eu gosto, particularmente, do exemplo de uma de minhas mais queridas, Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Garanto que muitos curiosos vão me indagar quem seria essa dama. Pois se trata, nada mais, nada menos, de que a Cora Coralina de versos tão singelos e tão cheios de luz. E outro dia, eu mesma fiquei a cismar por alguns minutos sobre quem seria um tal de Joaquim de Assis, que aparece em um artigo de um pesquisador europeu. Até que me dei conta que o articulista estava se referindo a nosso Joaquim Maria Machado de Assis. 
 
Esse troca-troca mágico de nomenclatura, que agrada a quem escreve, inclui um artifício que é o autor imiscuir-se no texto com seu nome da vida normal, apenas trocando uma que outra letra, como faz o magnífico Reinaldo Santos Neves, que se torna “Reynaldo”, no romance “Sueli”. 
 
Mas, retornando ao déjà vu e ao frêmito delicioso de que falo no início, dá-se o caso que por duas vezes, neste ano, fui possuída por eles. Foi quando me vi convidada para duas cerimônias de Literatura, em Vitória (a Feira Literária promovida pelas Academias de Letras, e a homenagem ao Dia do Escritor, na Assembleia Legislativa). Nesses eventos cheios de distinção e graça, em vão fiquei buscando meu nome nas listas. 
 
É claro que eu buscava na letra B. Porém, para minha agradável surpresa e terna nostalgia, lá estava eu listada como Maria. Como todas as meninas nascidas em minha família barrense. E ao modo de minha mãe que, com toda doçura, me chamava assim.


Para quem gosta de ler minhas crônicas, aí vai a de hoje. Caderno 2, Jornal A Gazeta.


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