As meninas, de Lygia Fagundes Telles

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 “Mas não quero resposta, quero ficar só. Gosto muito das pessoas, mas essa necessidade voraz que às vezes me vem de me libertar de todos. Enriqueço na solidão: fico inteligente, graciosa e não esta feia ressentida que me olha do fundo do espelho. Ouço duzentas e noventa e nove vezes o mesmo disco, lembro poesias, dou piruetas, sonho, invento, abro todos os portões e quando vejo a alegria está instalada em mim.” (Lorena Vaz Leme)
Época: 1973. Foi neste ano, em plena ditadura, que Lygia Fagundes Telles, por meio de uma escrita envolvente, cutucou as feridas da burguesia com seu romance mais importante e conhecido: três personagens femininas, todas diferentes entre si, com suas sinas, sonhos e ideologias. O livro rendeu à autora o Prêmio Jabuti em 1974.
O leitor penetra na mente dos pensamentos livres e soltos das personagens que a autora expõe por meio de uma escrita indireta, que se mescla com diálogos, observações, lembranças e a cultura da época, como por exemplo, drogas, feminismo, música e política. Pode até parecer meio confuso no começo por conta do estilo “indireto livre”, com fluxos de consciência que mudam de repente com foco em outra personagem, mas desde o começo o leitor se sente amarrado na trama de Lorena Vaz Leme, Lia de Melo Schultz e Ana Clara Conceição, jovens problemáticas que moram em um pensionato de freiras na região central de São Paulo, diante uma sociedade oprimida pelo poder da ditadura. Apesar do universo particular diferente de cada uma das protagonistas, elas compartilham entre si suas dores, sonhos e medos, dentro do quarto de Lorena, espaço onde as personagens encontram um tipo de paz particular, longe do mundo caótico e ameaçador que fica além dos portões do pensionato.
Lorena Vaz Leme é uma garota de família nobre, apaixonada por M.N. (sigla para Marcus Nemésios), homem casado e com filhos por qual nutre por ele desejos eróticos e espera ansiosamente por um telefonema, desde que o conheceu, quando ele lhe ofereceu uma carona. Vê em M.N. a possibilidade de obter, além de amor e uma vida feliz, carinho e proteção. Lia vive dizendo a Lorena que M.N. está mais para um pai do que para um namorado. Extremamente romântica e sonhadora, é dona de um quarto em tons dourados e rosa, com banheira, item protagonista de muitos trechos. Tinha um gato chamado Astronauta que desapareceu, fã de Jimi Hendrix, cujas referências aparecem muito no romance, inclusive dedicando uma música dele para Jesus Cristo. Tem dois irmãos, Rômulo, que morreu numa tragédia familiar, e Remo, que está no exterior exercendo a função de Diplomata e que lhe traz presentes “finos”. Muito amiga de Lia, ao qual chama de “Lião”, elas tomam chá juntas e dividem confidências.
“Lia segurou firme a banana e estendeu-a até a boca de Lorena.
– Jura dizer a verdade, só a verdade, nada além da verdade?
– Juro.
– Nome, por favor.
– Lorena Vaz Leme.
– Universitária?
– Universitária. Direito.
– Pertence a algum grupo político?
– Não.
– Por acaso faz parte de algum grupo político de libertação da mulher?
– Também não. Só penso na minha condição.
– Trata-se então de uma jovem alienada?
– Por favor, não me julgue, só me entrevista. Não sei mentir, estarei mentindo se dissesse que me preocupo com as mulheres em geral, me preocupo só comigo, estou apaixonada. Ele é casado, velho, milhares de filhos. Completamente apaixonada.
– Uma pergunta indiscreta, posso? Você é virgem?
– Virgem.”
Lia de Melo Schultz é comunista, “uma baiana “terrorista”, como dizem as freiras do pensionato. O namorado, Miguel, está preso e sendo torturado pela ditadura. Em questões de aparência, Lia é o contraposto de Lorena e Ana Clara, pois veste-se mal e não gosta de tomar banho. É estudante de Ciências Sociais e acaba se envolvendo com grupo militante de esquerda, e desde então seu fogo é o combate contra a burguesia alienada (Lia constantemente critica Lorena por sua postura de “burguesa acomodada”) e a repressão da ditatura. É através da personagem Lia que a autora destila a crítica na ditadura militar, conforme podemos ver no trecho abaixo, em que a personagem Lia lê para Madre Alix um trecho do relato de um preso político:
“Quero que ouça um trecho do depoimento de um botânico perante a Justiça, ele ousou distribuir panfletos numa fábrica. Foi preso e levado à caserna policial, ouça aqui o que ele diz, não vou ler tudo: (Ali interrogaram-me durante vinte e cinco horas enquanto gritavam traidor da pátria, traidor! Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo. Carregaram-me em seguida para a chamada capela: câmara de torturas. Iniciou-se ali um cerimonial frequentemente repetido e que durava de três a seis horas cada sessão. Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político. Neguei. Enrolaram então alguns fios ao redor de meus dedos, iniciando-se a tortura elétrica: deram-me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez mais fortes. Depois obrigaram-me a tirar a roupa, fiquei nu e desprotegido. Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com cassetetes, principalmente nas mãos. Molharam-me todo, para que os choques elétricos tivessem mais efeito. Pensei que fosse morrer…)”
Ana Clara Conceição, ou “Ana Turva”, tal como é chamada por Lorena e Lia, é modelo, alcoólatra, viciada em drogas (heroína, cocaína e psicotrópicos), dona de uma moral duvidosa e cheia de dívidas. Ama o traficante Marx, que mantém um relacionamento conturbado. A maioria das passagens do livro nas quais Ana Clara aparece é marcado por fluxos mentais da personagem sob efeito de drogas. Podemos perceber nos diálogos a falta de pontuação, propositalmente não colocada, para que se dê ênfase ao pensamento tresloucado e deslocado da personagem. Ana Clara constantemente se lembra dos frequentes abusos que sofreu do dentista, chamado por ela de “Dr Algodãozinho”, que deixava seus dentes apodrecerem para que ele pudesse dopá-la e abusar dela. Diz que no mês de janeiro vai se casar com o “Escamoso”, noivo que ninguém conhece e não sabemos realmente se ele existe ou se é um delírio da personagem. Ela vê o casamento com um homem rico como a solução de seus problemas. Em muitas lembranças, a personagem se lembra da cena da barata nadando no prato de sopa de couve. Abaixo, um dos diálogos que Ana Clara tem junto ao namorado:
“Descubro um biscoito debaixo do travesseiro. Mastigo devagar porque é um biscoito adocicado e não queria que ele acabasse logo gosto tanto de açúcar posso comer açúcar à vontade meu corpo é elegantérrimo não engordo. Posso comer açúcar aos montes e não acontece nada. Lião não pode. Ainda vai ficar obesa aquela lá mais uns quilos e já pode vestir roupas de mãe de santo. Lorena não conta. É inseto. Existe inseto com problema de engordar? Um inseto.
– Dane-se esse Mozart, gosto de Chopin. Chopin e Renoir, quero artista doce. A boca no lugar da boca, tudo certo, tudo feliz que de malditos eu já estou cheia. Foi o que eu disse a Loreninha. Adora ouvir esses piolhentos mas só usa geleia inglesa no pão. Uma esnobe. Deixa-me rir e faz ha ha ha ha.
Ele largou os ponteiros do relógio e deitou-se de novo.
– A gente não veio ao mundo pra se aporrinhar, aí é que está a coisa.
Procuro mais biscoito e só encontro farelo. Tiro o cigarro de sua mão e a fumaça é açucarada. Seu beijo é açucar-cande.
– Max, você gosta de Renoir? Renoir o pintor. Você gosta? Ele recebeu o cigarro de volta e estendeu o braço para o teto.
– Bosch. Hieronymus Bosch.
– Ah, só monstro, só atormentação. Pintura de louco, pomba. Tenho ódio de louco.”
O livro de Lygia nos traz também muitas intertextualidades, como referências a Carlos Drummond de Andrade, Tolstói e Dante Alighieri. Abaixo, um trecho com referência à Drummond:
“(…) Bom é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão inofensivas na rotina. Comem e não vejo o que comem. Falam e não ouço o que dizem, harmonia total sem barulho e sem braveza. Um pouco que alguém se aproxime e já sente odores. Vozes. Um pouco mais e já nem é mais espectador, vira testemunha. Se abre o bico para dizer “boa noite” passa de testemunha para participante. E não adianta fazer aquela cara de nuvem se diluindo ao largo porque nessa altura já puxaram a nuvem para dentro e a janela-guilhotina fechou rápida. Eram laços frouxos? Viraram tentáculos. Ah, que alegria quando fico aqui sozinha. Sozinha. Como chupar escondida um cacho de uvas. ‘E a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo’ – ah, preciso decorar isso, C.D.A. Minha poesia, minha música. Às vezes, os amigos (podiam ser menos vezes, ai meu Pai). A presença-ausência de M.N. Dos meus mortos. Rômulo, meu irmão. Paizinho. A lembrança de veludo de Astronauta”
A leitura deste livro é fundamental para entender o contexto social e o sentimento dos jovens na época, pois apesar de serem personagens bem distintas umas das outras, cada um de nós carregamos um pouco das angústias, medos, sonhos e esperança de cada personagem. Estão longe de serem perfeitas, são personagens tão humanos e reais que, mesmo sendo um fluxo de pensamento, não deixamos de ler a obra dentro do contexto real em que ela se insere, mesmo em seus trechos de conteúdo mais surreal. Lygia Fagundes Telles trouxe ao leitor todo um universo rico de detalhes do contexto social, com discussões sobre Che Guevara, Martin Luther King, música, relações homossexuais, casamento entre padres, igreja progressista, tudo misturado com algumas tolices das personagens que, afinal, todos nós temos. Nós, leitores, mergulhamos nos traumas e conflitos das personagens com cruzamentos constantes de memórias, não havendo, assim, um “padrão” de tempo nas ações. O incrível é que mesmo assim, a cada linha é possível identificar qual personagem está na ação, pois Lygia fez com que cada uma delas tenha sua personalidade bem definida na forma do diálogo, sendo Lorena dona de um fluxo mental e diálogos mais cultos, Lia, uma linguagem mais informal, dentro da política engajada ao qual ela participa, e as falas de Ana Clara se inserem em um contexto mais surreal, confuso e cheio de idas e vindas de sua infância traumática e o “futuro” que ela idealiza ao lado do marido rico.
Neste romance audacioso e importante para a Literatura Brasileira, Lygia nos traz lindas e polêmicas passagens que retratam a época de silêncio dos generais. O livro ganhou adaptação para as telas em 1995, através do diretor Emiliano Ribeiro. Adriana Esteves interpretou Lorena, Drica Moraes como Lia e Cláudia Liz como Ana Clara. A atuação de Cláudia ficou perfeita, o que lhe rendeu um prêmio no Festival Latino-Americano de Cinema. No YouTube vocês podem encontrar o filme na íntegra, mas sugiro ler o livro primeiro!
Lygia é mestre no uso das metáforas, da elegância e agilidade para construir as cenas e diálogos. Metáforas bem construídas nos propicia outro olhar sobre as coisas ao nosso redor. A grande dificuldade no entendimento das obras, além do “não” hábito de ler, é a incapacidade de enxergar além. A maioria das pessoas enxergam apenas o que está “direto”, e talvez seja por isso que o livro tenha a alcunha de “leitura difícil/complexa”. Metáforas nos permitem pensar e, sobretudo, ir além. Boa Leitura!
“Ana Clara contou que tinha um namorado que endoidava quando ela tirava os cílios postiços, a cena do biquíni não tinha a menor importância, mas assim que começava a tirar os cílios, era a glória. Os olhos nus. Em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante do que a do sexo. Pura convenção achar o sexo obsceno. E a boca? Inquietante a boca mordendo, mastigando, mordendo. Mordendo um pêssego, lembra? Se eu escrevesse, começaria uma história com esse nome, ‘O Homem do Pêssego’. Assisti de uma esquina enquanto tomava um copo de leite: um homem completamente banal com um pêssego na mão. Fiquei olhando o pêssego maduro que ele rodava e apalpava entre os dedos, fechando um pouco os olhos como se quisesse decorar-lhe o contorno. Tinha traços duros e a barba por fazer acentuava seus vincos como riscos de carvão, mas toda a dureza se diluía quando cheirava o pêssego. Fiquei fascinada. Alisou a penugem da casca com os lábios e com os lábios ainda foi percorrendo toda sua superfície como fizera com as pontas dos dedos. As narinas dilatadas, os olhos estrábicos. Eu queria que tudo acabasse de uma vez mas ele parecia não ter nenhuma pressa: com raiva quase, esfregou o pêssego no queixo enquanto com a ponta da língua, rodando-o nos dedos, procurou o bico. Achou? Eu estava encarapitada no balcão do café mas via como num telescópio: achou o bico rosado e começou a acariciá-lo com a ponta da língua num movimento circular, intenso. Pude ver que a ponta da língua era do mesmo rosado do bico do pêssego, pude ver que passou a lambê-lo com uma expressão que já era sofrimento. Quando abriu o bocão e deu o bote, que fez espirrar longe o sumo, quase engasguei no meu leite. Ainda me contraio inteira quando lembro, oh, Lorena Vaz Leme, não tem vergonha?”


Lygia Fagundes Telles tem 92 anos, é romancista e contista. Membro da Academia Brasileira de Letras , Academia Paulista de Letras e Academia de Ciências de Lisboa, sendo referência para a literatura pós-modernista brasileira


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