EU VOS ESCREVO DA ILHA

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Dizem que os historiadores se baseiam em cometas e eclipses, quando querem estudar fragmentos de uma saga perdida. Fico a pensar que seria esse um notável artifício para fixar alguns episódios que a memória da gente, esgarçada pela espuma dos dias, só consegue entrever aos pedaços. Nem sei se eclipses e cometas fazem parte das minhas recordações. Porém, como uma menina criada entre os coqueiros e o vento nordeste, sei de muitas outras coisas. Sei de conchas, águas vivas, balsedos e peixes. Mas peixes, balsedos, água vivas e conchas não são instrumentais. Não me permitem recompor o mapa de outros espaços para além daqueles da Barra. Assim é que se eu quiser falar da Ilha, da primeira vez em que a vi (coisa que me ocorre para festejá-la amanhã, dia 8, em seu aniversário), terei de me aventurar por dentro do território obscuro do tempo, com suas luzes dispostas em uma fileira até o infinito. Então começo dizendo que eu vos escrevo da Ilha. A primeira vez, vista do alto-mar, ao longe, a Ilha contra o continente, tudo era como uma cadeia azul de montanhas.“Menina, aquele é o Mestre Álvaro”, falou o marinheiro apontando uma pedra à distância. A pedra alta e imensa brilhava entre pedras mais baixas. Coisa que eu, vinda de uma terra plana de águas e areias, ainda nem ainda conhecia.Um burburinho de cordas lançadas. Barquinhos em volta do pequeno navio. Uma tábua para atravessar até o cais. Desembarquei, ainda tonta daqueles quase dois dias mareados. Às vezes deixando a diminuta cabine revestida de tábuas para olhar a linha do horizonte encostando no mar; às vezes dormitando no beliche repartido com minha tia Glorinha, enquanto a chama do lampião balançava, de lá para cá, a cada batida de uma onda mais forte no casco.De quase nada mais lembro. Após o desembarque, recordo de como atravessamos a Praça com seu relógio lançado contra o céu como um totem cinzento e de como subimos a escadaria rumo à Cidade Alta. Era essa mesma escadaria que, do meu exílio, tantas vezes subo e desço em sonhos. E que eu própria, em “Memória das ruínas de Creta”, enchi de minotauros. Minotauros sofredores da luz, chagados do ruído, que se afastam do sol, se escondem no silêncio. Ainda hoje, quando retorno à Ilha, eu os vejo, disfarçados, bebendo nos bares do Centro. E, pela madrugada, estonteados de sono, erram à cata dos becos escuros que cortam as ladeiras atrás da Catedral, onde eles se abrigam e têm a ilusão de estar no labirinto. Pois é desta Ilha que, agora, vos escrevo. Não da Ilha física de Vitória, Latitude -20° 19' 10'', Longitude -40° 20' 16''. Eu vos escrevo da Ilha dos Minotauros, situada no imaginário de minhas cartografias.E antes que alguns pragmáticos me acusem de desrespeito para com a realidade, eu explico. Desde criança me acostumei a ser apontada como uma criatura sujeita a alucinações. E nunca reclamei. Pois sei que isso é um jeito que algumas pessoas têm de para justificar o estranhamento que sentem comigo. E, afinal, não descreio das minhas alucinações. Até gosto delas. Mas são tão bobinhas! Nem chegam aos pés daqueles gloriosos delírios que impeliam à fogueira as bruxas, os místicos e a coitada da Joana D’Arc. No entanto, a elas devo a possibilidade de reordenar os acontecimentos do cotidiano para encaixá-los em alguma passagem de meus contos, romances e sei mais lá o quê. Por isso, desculpai a singeleza desta crônica ligeira. Foi escrita para ser um presente de aniversário. Mas acaba que está confeitada de coisas absurdas da imaginação.

Queridas e queridos, para vocês, minha crônica feita para o aniversário da bela Ilha/Cidade: Vitória, ES.


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