OS OSSOS DO OFÍCIO

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Queridas e queridos, para vocês que leem o que escrevo, aí vai a crônica desta segunda-feira. Caderno Dois. Jornal A Gazeta.

Escrever ficção não é para os fracos. Requer disciplina, coragem, técnica e muita determinação. Tudo bem salpicado com pitadas de imaginação, maluquices e sonhos. A inspiração representa apenas dez por cento. O resto do trabalho é transpiração.

Eu chamo isso de ofício; outros, não. Dizem até que ofício é quando a atividade exercida pode ser declarada em formulários e questionários e papeis que têm aquele espaço onde se deve registrar a profissão. 

A mim não importa que nunca possa deixar ali a palavrinha esquisita: “escritora”. E isso acontece porque se eu grafar “escritora”, as criaturas a serviço das repartições oficiais estranhariam tal fato. Afinal, “escritora “, no país, parece tão desinteressante aos olhos da economia e tão fora das circunstâncias burocráticas quanto alguém que declarasse em um papel oficial ser “pastora de nuvens”. 

Mas, mesmo assim, continuo a chamar o que faço de ofício.

É certo que não me dá o retorno para pagar a contas, nem mesmo um modesto retorno para comprar verduras na feira. Mas é meu ofício. 

De fato, conheço muitos poucos escritores no Brasil que vivem daquilo que escrevem. A maioria dos que conheço acontece na literatura como um ser dividido pela constante necessidade de exercer um “trabalho produtivo” e a tarefa de escrever. 

Alguns me perguntam se não seria melhor dizer que escrever ficção literária se trata de arte. 

Eu respeito essa bela posição seletiva. No entanto conservo uma dúvida: afinal, qual a diferença entre artista e qualquer um outro profissional, dentro de suas limitações diante da existência, do mundo e da humanidade? 

Laurence Durrel, o autor dos magníficos romances de “O Quarteto”, esclarece: “As pessoas pensam que os artistas devem ter uma experiência absolutamente ilimitada. Na verdade, acho que são tão míopes como uma toupeira, e se se limita seu campo às possibilidades pessoais, fica-se espantado por ver como sabem pouco a respeito da vida”.

É verdade que Durrel é um modelo de escritor pragmático. Porém talvez esteja certo. Ou seja, o artista é tão limitado quanto qualquer outra pessoa. No entanto sabe como lidar com essa limitação. Ele finge, trapaceia, furta, assimila e transforma tudo em torno: as criaturas, os acontecimentos, os objetos, as paisagens e, até mesmo, o trabalho de outros artistas. Só assim, consegue dar um nó nas deficiências comuns e brincar de criar. 

Talvez esse seja o segredo. E talvez, por essa mesma razão, alguns escritores não se furtam a confessar que leem os livros de outros escritores não só como um prazer, e sim como a tarefa de um artífice que estuda as tramas e estruturas de uma obra que admira, para reproduzi-la. 

Um escritor que se preze tem o dever e o poder de fazer um amálgama particular de tudo que assimilou em suas experiência e em suas leituras de poemas, romances e contos já feitos por outros escritores. Esse amálgama é o mistério da literatura. 

No mais, escritores de ficção são os profissionais da não-comunicação. Um jogo divertido, afinal. Seu trabalho é de nada dizer. Escrever ficção é mentir, enganar, mascarar, travestir, despistar. 

São eles os operários do silêncio e das sombras. E os leitores fiéis esperam por esses gritos mudos e correm para escutá-los, assim que eles se materializam em livros, folhetos e outras publicações.

E assim tudo acontece: escritores escrevem; editores editam; livreiros vendem; leitores leem. Muitos desses leitores se transformam, por sua vez, em escritores. E assim segue a cadeia do ofício de escrever ficção.


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