Três poemas de Arseni Tarkóvski

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VIDA, VIDA

Não acredito em pressentimentos, e augúrios
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia
Nem do veneno. Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há por que
Ter medo da morte aos dezessete
Ou mesmo aos setenta. Realidade e luz
Existem, mas morte e trevas, não.
Estamos agora todos na praia,
E eu sou um dos que içam as redes
Quando um cardume de imortalidade nelas entra.

Vive na casa e a casa continua de pé
Vou aparecer em qualquer século
Entrar e fazer uma casa para mim
É por isso que teus filhos estão ao meu lado
E as tuas esposas, todos sentados em uma mesa,
Uma mesa para o avô e o neto
O futuro é consumado aqui e agora
E se eu erguer levemente minha mão diante de ti,
Ficarás com cinco feixes de luz
Com omoplatas como esteios de madeira
Eu ergui todos os dias que fizeram o passado
Com uma cadeia de agrimensor, eu medi o tempo
E viajei através dele como se viajasse pelos Urais

Escolhi uma era que estivesse à minha altura
Rumamos para o sul, fizemos a poeira rodopiar na estepe
Ervaçais cresciam viçosos; um gafanhoto tocava,
Esfregando as pernas, profetizava
E contou-me, como um monge, que eu pereceria
Peguei meu destino e amarrei-o na minha sela;
E agora que cheguei ao futuro ficarei
Ereto sobre meus estribos como um garoto.

Só preciso da imortalidade
Para que meu sangue continue a fluir de era para era
Eu prontamente trocaria a vida
Por um lugar seguro e quente
Se a agulha veloz da vida
Não me puxasse pelo mundo como uma linha.
* Tradução de Jefferson Luiz Camargo.


O VERÃO PARTIU

O verão partiu
e nunca devia ter vindo
será quente o sol
mas não pode ser só isto

tudo veio para partir
nas minhas mãos tudo caiu
corola de cinco pétalas
mas não pode ser só isto

nenhum mal se perdeu
nenhum bem foi em vão
à luz clara tudo arde
mas não pode ser só isto

agarra-me a vida
sob a sua asa intacto
sempre a sorte do meu lado
mas não pode ser só isto

nem uma folha se consumiu
nem uma vara quebrada
vidro límpido é o dia
mas não pode ser só isto


EURÍDICE

Temos um só corpo
singular, solitário
a alma teve que baste
ali dentro fechada
caixa com olhos e orelhas
do tamanho de um botão
e a pele – costura após costura –
cobrindo a estrutura óssea

sai da córnea voando
para o cálice celeste
para o gelado raio
da roda voadora das aves
e escuta pelas grades
da sua cela viva
o crepitar do bosque e da seara
e a trombeta dos sete mares

corpo sem alma é pecado
é um corpo sem camisa
nada feito sem intenção
sem inspiração, nenhuma linha
insolúvel charada:
quem no fim irá voltar
à pista de dança quando
ninguém houver para dançar?

sonhei com uma alma outra
de um modo outro vestida:
ardia na fuga
da timidez à esperança
espirituosa e límpida
como o fogo habita a terra
sobre a mesa pondo lilases
para que lembrada seja

corre, criança, não pares
pela pobre Eurídice
rola o arco e a gancheta
no mundo roda
até subires uma oitava
no tom alegre, e calma
porque a cada passo a terra
faz soar guizos nos teus ouvidos


* Traduções de Paulo da Costa Domingos, publicada na revista escamandro.


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Um comentário:

  1. Primeiro quero dizer que é uma honra comentar eu seu blog, professora! Sou estudante de Teatro em São Paulo. Tenho pesquisado sobre o Arseni (ou Arseny), para um projeto que me veio exatamente na madrugada de ontem para hoje lendo o poema que cá está como "O Verão Partiu", porém a versão original em russo, língua que estou estudando. Cada vez mais me convenço de que poesia não é só rima (ou quase rima); uma simples tradução literal já deixa este poema bem mais profundo. Li em outra fonte que essa versão aí parte de uma versão inglesa, o que, no meu humilde modo de ver, já gera um distanciamento cultural maior. Grande abraço!

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