SINFONIA URBANA

/
3 Comments


Hoje, a cidade se chama filhote de pássaro que despencou do ninho, folha úmida de trevo, débil orvalho na relva do jardim, migalhas de flores de acácia. Ontem era noite quente de apartamento, persianas abertas, céu sem nuvens, estrela posta entre antenas e prédios. Um pouquinho antes, poderia também se chamar tempestade despencando na tarde, trovões, capa e guarda-chuva, asfalto coberto de água, sapatos ensopados, café quente, vinho, leitura de Shakespeare na cama, sono manso e sem sonhos.  Esses são alguns nomes que dou à cidade.
Pauliceia  desvairada, foi como a chamou Mário de Andrade, seu poeta fiel. Desvairada metrópole. Incognoscível. Multifacetada. Eu digo que ela é.
Respeito-a, com um respeito que tem muito de estranhamento e de timidez. Comovem-se seus inumeráveis encantos. Surpreendem-me suas tantas variedades. Mas nunca a chamarei de cidade de meus afetos.
A perspectiva que da cidade tenho é um eixo de desencontros abissais. Não me acostumo a ela, a suas geometrias. Não conheço as latitudes íntimas, as poções de lascívia, os grãos de loucura, os líquens secretos, que escorrem de suas casas de divertimento, de seus bairros de luxo, de suas favelas, de suas calçadas, de seus milhões de cães, gatos e bares noturnos.
Ando por estas ruas carregadas de carros, gente, consumos e ilusões, sonhando outras ruas mais caseiras, mais identificáveis, menos convulsionadas, que estão longe daqui. Perpasso estas paisagens feitas de vidro, soberbia, cimento e metal, ensimesmada como prisioneira, isolada em mim mesma, como um rio que entra  solitário pelo meio do  outono.
Toda tentativa de aproximação que faço, no repuxo movediço do deserto que me liga à cidade, é uma causa perdida. É uma cidade imensa. Ninguém sabe dizer onde começa ou acaba. É uma cidade-monstro. Engole as pessoas e faz delas o que quer.
Uma criança estava sentada na escada que desce até o túnel da estação do metrô. Parecia aturdida. Vestidinha toda de cor de rosa, abria olhos espantados para a multidão que passava por ela sem nem mesmo enxergá-la.
Eu quis me chegar. Mas pensei que, por aqui, não é de bom tom abordar alguém estranho, nem mesmo uma criança aturdida. Veio uma funcionaria de farda, debruçou-se, fez algumas perguntas e a levou pela mão. Depois, eu a vi na cabine, mordendo uma maçã embrulhada em papel de seda, enquanto pelo alto-falante se anunciava que uma menina de vestido cor de rosa havia sido encontrada. Parei e esperei.
Apareceu uma jovem muito jovem, de shorts e sandálias. No máximo, tinha uns dezoito anos. “É minha filha”, disse ela à funcionária de farda.  “Tem esse mau costume de desaparecer”. A garota correu para a jovem de shorts e sandálias e a abraçou. Em troca ganhou alguns tapas. A menina ainda chorou um pouco. E lá se foram as duas pela estação afora. Perdi-as de vista, em meio a milhares de seres que se cruzavam e descruzavam nas plataformas.
Fiquei ali parada, pensando qual seria o destino daquelas duas desconhecidas criaturas que, por um momento, sem que mesmo o soubessem, me fizeram participar de um lapso de suas existências,  para logo sumirem, engolidas pela imensidão de um espaço sem mapa.
Por instantes, uma nuvem de tristeza se emaranhou em meus olhos, sem explicação. Porém, logo me recompus. Afinal, era apenas um acontecimento banal entre tantos que, diariamente, a cidade perpetra em suas desmesuras,
Conformada, segui em direção às portas dos trens que iam e vinham, mergulhando como imensas lagartas prateadas nas entranhas da terra e da escuridão. 

A Gazeta 24/03/2014





You may also like

3 comentários:

  1. Percorrer o mundo na boleia de seu olhar escrevinhador é melhor que morar em um caleidoscópio.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bem, meu adorável desconhecido (que sei quem é) , fico muito grata por tanta gentileza. Beijos amado Chico Neto.

      Excluir
  2. Bernadette Lyra, que bem reencontrá-la pela notícia de seu novo livro e por esse texto, no qual vi a mim nessa Curitiba -, tão menor que Sampa -, mas tão parecida em sua des-humanidade. Vou comprar o seu livro cuja resenha já me interessou muito.
    Um grande abraço, Sônia Gutierrez (mestrado Ctba.2002).

    ResponderExcluir