UMA METÁFORA PARTIDA EM DUAS

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UMA METÁFORA PARTIDA EM DUAS

A GAZETA 05/05/2014


Todo escritor é como aquele náufrago solitário do conto de  Edgard Alan Poe.  Atirado pela tempestade no convés de um velho navio, o coitado só encontra fantasmas em torno. E é por isso que escreve histórias inventadas sobre aquelas estranhas personagens, que passam por ele sem o ver. Depois joga essas histórias nas águas, dentro de uma garrafa.  
Vocês entenderam por que estou tão metaforizante? Não? Eu explico. Primeiro porque as metáforas são pãezinhos mágicos de que se alimentam os que escrevem com a força da fantasia. Segundo porque esta metáfora sobre manuscritos, naufrágios e garrafas, em especial, vai ao encontro de uma notícia que quero lhes dar.
É sobre a Feira Literária Capixaba. Vai acontecer de 15 a 18 de maio, em Vitória. Bem aí, naquele espaço que se chama a Praça do Papa.
Pois é. A praça do papa vai se transformar. Toda cheia de letras e palavras. Com direito a muita gente linda, elegante e sincera, que ama a literatura
Sou suspeita para falar em literatura. A literatura é o sal de minha vida. Escrever é o que dá tempero e gosto a meus dias. Necessito escrever, como quem necessita de ar.
Mas necessito também de alguém que esteja na outra ponta da linha. Ou seja, necessito de gente generosa e interessada que esteja disposta a ler o que escrevo. E sem essa gente abençoada, nem eu, nem ninguém que aspire à carreira da literatura pode sobreviver.
Eis aí: escritores e leitores. Formamos um par. Como a agulha e a linha. Como o amor e o beijo. Como os dois famosos neurônios, o Tico e Teco.
É delicioso conhecer alguém que seja um bom leitor. É tão delicioso quanto comer um peixinho na beira da praia, vendo aquele deslumbre de mar que é o mar azul-verde do Espírito Santo.
Vocês vão me indagar o que entendo por um bom leitor. Então eu aproveito para citar de novo o meu escritor predileto: Vladimir Nabokov.
Nabokov diz que um bom leitor necessita de quatro elementos: imaginação, memória, um certo sentido artístico e um ótimo dicionário. E diz também: um bom leitor é um releitor.
 Releitor não apenas no sentido de recordar emoções pessoais, reviver acontecimentos ou lembrar o seu próprio passado; mas também na consciência de acionar o distanciamento, a imaginação impessoal, o gozo artístico diante do livro.   
Já escutei teóricos que falam que o leitor ideal é aquele que guarda o que foi lido por ele na mente e remói tudo no fundo dos sentimentos depois. Concordo. E é bonito.
Mas, para mim, o leitor ideal, o leitor supra sumo, o que não deixa dúvida alguma; o leitor que é o cimo da montanha azulada, o meu deleitoso Aconcágua, o meu Kilimanjaro divino é mesmo aquele que lê como se ouvisse música. É aquele que transforma as palavras escritas sobre a página quente em impulso nervoso. É aquele que  junta prazer sensual e intelecto, e ainda vai muito além dos jardins da fruição e do entendimento. O meu leitor ideal é aquele que, ao ler, sente um arrepio fatal na corrente dorsal da espinha.
Estou aqui perorando sobre leitura e leitores, na esperança de que estas frágeis linhas possam levar vocês à Feira Literária, na praça que um dia foi do papa e que, agora, será a praça dos livros.
Por isso retorno à metáfora inicial. Todo texto de ficção é como um manuscrito encontrado em uma garrafa. Alguém o atirou ao oceano do espaço e do tempo. Ele vaga entre algas, redemoinhos e montanhas de gelo, até que as ondas o levam à areia. 
Um dia, um leitor ou dois ou três ou mais o encontram. Dessa forma é que o texto se cumpre. E quem o escreveu pode, enfim, descansar.



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