TARDES SILENCIOSAS DE LINDOIA

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A GAZETA
02 de junho de 2014

Pois é para você, que naquela noite quando a casa provisória que abrigava a Feira fechou muito depressa e os seguranças, que tinham passado o dia vagando no meio das gentes e vigiando os livros enfileirados nos estandes, se foram cada um pra seu lado, ansiosos para chegar em casa e quem sabe beber umas cerveja na frente da televisão.
Pois é para você, que depois do sumiço da multidão no ar, como fumaça, tão rapidamente quanto um bando de pássaros noturnos, resistiu à solidão que se instalou na Praça do Papa, quebrada tão somente pelo pio de uma coruja e pelo zanzar dos carros que se iam evaporando em uma nuvem de aço, distância e faróis.
 Pois é para você, que rompeu a barreira do tanto tempo em que a gente não se via e ali ficou a meu lado, esperando, e seu filho, um pouco cansado e sem entender os motivos daquela demora, esperava também por você; e o meu filho, chamado antes do prazo, corria a cem quilômetros pela Beira-Mar para resgatar a mãe que se viu, de repente, sozinha.
 Pois é para você, que nomeio sem nomear, na certeza de que você saberá se reconhecer, é para você que, agora, em agradecimento, remeto esse meu conto de que você se lembrou aos pedaços e me disse dele tanto gostar.

Papiau ó, te conto: gostava de espiar as sem-vergonhices da filha da vizinha (que a menina tem umas pernonas, isso tem). E de rir. A nora de Papiau, uma dama!, ficava azul, pálida, roxa. Conforme o riso de Papiau, cada tarde. Papiau nem te ligo. Lá, firme. Espiando pela janelinha. E a menina, filha da vizinha, firme. Lá.
−Velhinho descarado – gritava.
Quando chegava o namorado (o pilantra, como Papiau diz), começavam os mais outros quinhentos. Então, tome beijinhos e tome abracinhos e tome tanta esfregadinha e tanto agarramento que a nora de Papiau vinha correndo para fechar as janelas (fora criada em colégio de freiras e se considerava, graças a Deus, uma dama!). Papiau, nessa hora achava essa nora um saco, uma fresca. Não dizia, só achava. E nem saberia dizer. Este era o palavreado dos netos. Papiau pouco entendia do que os netos falavam, menos quando falavam com palavras bonitas como no cartão que a nora botou em cima da mesa no dia dos pais:
            Ao querido vovô
Que é pai de nosso pai
Com um beijo oferecem
Mário Luís, Maria Christina, Juninho.
Dentro do embrulhão cor de café-com-leite, um par de pantufas número trinta e oito (Papiau tinha um pé magro, fino, pequeno).
Mas melhor que tudo na vida, melhor de que presente, era ficar ali na janela, espiando a menina e o namoro com sem-vergonhices da menina, filha da vizinha. Para escândalo da nora:
−Você tem de dar um jeito em seu pai, meu amor!
Papiau via o rapaz pegar naqueles peitos, passar as mãos naquelas pernonas grossonas. E ria. Gengivas só. Que os dentes de há muito foram pro bebeléu.  A nora, uma dama, ficava azul, pálida, roxa:
−Você tem de dar um jeito, meu amor.
Papiau só querendo:
Espiar a menina naquela preguiça; espiar a menina o dia inteiro; espiar a menina naquele namoro que benza-a Deus!
Mas a nora de Papiau com seus nervos de dama, querendo:
−Você tem de dar um jeito.
A nora de Papiau, ela mesma, sacudiu o forro do terno marrom. Escolheu a gravata seca de tão velha, na caixa. Botou um lenço amarelo no bolso para combinar com a gravata.
− Se morrer, já está preparado.
Carregaram Papiau no automóvel comprado a prestação. A filha do vizinho indagou (foi a única):
−Pra onde estão levando o velhinho?
Mas ninguém quis dizer. Nem a  nora, nem o filho, nem os netos.
Papiau não é bicho. Mas também não é gente. Papiau, ó, babau.




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