É ISSO QUE QUEREMOS

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A GAZETA
16 junho 2014

A que ponto a paixão pelo futebol consegue obnubilar o campo de incertezas que se estende aquém, em torno e para além da Copa? Aqui, nesta metrópole, escolhida para sede do jogo de abertura, o que se viu, pelo menos até a quinta-feira, foi uma preparação duvidosa, forjada na hesitação, oscilante, fincada entre as dores e mazelas urbanas e a obrigação de torcer pela seleção brasileira.
Algumas ruas estriadas nas cores da bandeira; alguns carros com tiras verde-amarelas presas aos retrovisores; alguns torcedores com camisas numeradas nas costas; alguns vendedores a soprarem cornetas barulhentas, postados em cada cruzamento. No mais, uma passividade ruminante diante das tentativas de incentivar o consumo esperado, vindas de capas de revistas, dos jornais e da televisão.
É verdade que as caixas de cerveja foram vendidas em excesso. E que as lojas de cosméticos registraram um aumento na venda de esmaltes na cor verde e na cor amarela. O que deixou bem satisfeitos os lojistas e os donos dos salões de beleza. Além de bem esdrúxulas as unhas de algumas criaturas.
O que faltava, então, para que a cidade se entusiasmasse? Faltava o alento. Faltava aquele tipo de luz que acende o fogo nos corações, sejam eles ou não esportivos. Faltava aquele algo “mais”, que não é o que a Shell prometia dar nas propagandas de alguns tempos passados.  
Isso talvez porque, apesar dos gringos que chegaram aos borbotões, com seus chapéus e roupas coloridas; apesar dos gringos que lotaram os hotéis e as pousadas de preços imediatamente inflados; apesar dos gringos que rondavam (e continuam rondando) por avenidas e bares como borboletas berrantes atraídas pela chama de festa e alegria em que acham que vivemos o ano inteiro; apesar desses gringos, saudados como a salvação da lavoura por conta dos dólares e euros que os analistas afirmam que eles vão deixar no país; apesar desses gringos  que nos olham como se fôssemos os mais cordiais, leves e felizes seres sobre o planeta; apesar desses gringos, amigáveis ou pretensiosos que sejam, nós brasileiros sabemos, de modo secreto e inevitável, que há algo de estranho no ar, além dos aviões de carreira. E sabemos que essa alegria, festa e cordialidade estão, profundamente, sendo postas em questão.
Estamos em crise, senhoras e senhores. Estamos em um estado de torpor e cansaço do qual nem o Neymar com seus gols milagrosos é capaz de nos arrancar. Tudo que nos move, agora, tudo o que balança nossas ilusões, como a bola que rola entre as traves faz balançar a rede depois de um chute de Fred ou Oscar, é a vontade de que o país seja respeitado e reconhecido no mundo, não apenas pelas bundas redondas de nossas mulatas ou pelo famoso “jeitinho” para sobreviver. Fora isso, nenhuma música ufanista, nenhum programa de tevê em que se cante o hino da Pátria de modo jocoso, nenhum “pra frente Brasil”, nada é capaz de animar nossas almas, paralisadas entre as incertezas e os desalentos.
Não queremos mais essa imagem de que tudo vai bem. Não queremos mais a pirotecnia suspeita desse espetáculo, quase de mau gosto, da abertura da Copa. Não queremos mais olhos fechados, enquanto as pessoas continuam enfrentando a dura morte das esperanças em cidades enclausuradas pelo medo e pela violência.
Queremos um Brasil capaz de ir muito além dos simbolismos rasteiros, muito além do jardim dos estereótipos, muito além das tramoias teatrais “para inglês ver”. Queremos uma imagem própria, forte, verdadeira e corajosa, para vivermos em paz conosco e com nosso país. É isso que queremos.






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