DAMA DO POENTE E DA AURORA

/
0 Comments
 

Jornal A GAZETA
Caderno 2
09 fevereiro 2015

Era um ano qualquer. A década era a de setenta. Foi por acaso. Eu estava de passagem pelo Rio, rumo a outra cidade mais distante. Foi aí que ela apareceu. Assim, de repente. Saída não me lembro de onde. O que me lembro é que alguém a chamou pelo nome e a apresentou a mim.  
Dizer que ela era linda e loura é chover no molhado. Ela era mais. Tinha uma luz direta. E um rosto tão belo e tão bem recortado, que  até parecia ser talhado em pedra. Mas tinha também um rasgo escuro de melancolia que, de vez em quando, lhe atravessava a face.
Só algum tempo depois, um amigo comum me informou da sombra que se projetava em sua vida. Perdeu a mãe aos seis anos. De modo trágico. Um suicídio. Um pulo sem retorno no poço de água do jardim da casa. De modo não menos trágico, aos dezoito, perdeu o pai. Que se matou bebendo soda caustica.

Sem a mãe, foi viver em um internato de freiras. Chorava dia e noite, com saudades do pai, de quem sentia falta. Depois que ele morreu, fez a si mesma a promessa de que seria alguém. Coisa que se cumpriu e que se revelou, logo a seguir, no cintilar de sua determinação. 

Isso foi o que me contou nosso amigo comum, com voz comovida. Penso que ele estava apaixonado por ela. Como tantos.


E eu, daí à frente, a cada vez que a via nas telas (pois que era ela uma atriz), a cada vez que via sua imagem, toda dourada como um  jorro de joias, toda cambiante, como uma esfinge furta - luz, eu pensava nos versos do poeta Dante: “No meio do caminho de nossa vida encontrei-me dentro de uma floresta escura onde a trilha direta se perdia. Ah, como é difícil falar dessa floresta, selvagem e áspera e densa, que só de pensar meu medo se renova! Tão amarga é, que dificilmente a morte poderá ser mais”.

É que ela carregava consigo essa figura de solidão, perseguida por uma ancestral dor. Talvez fosse o que tornava em relâmpago a azulada magia de seus dons de dama do poente e da aurora. 

No mais, ela se recusava a sorrir, como uma esfinge especialmente preparada para um ritual de enigmas. O que, pouco a pouco, atraiu a atenção de cineastas e produtores e fez com que fosse requisitada para o universo de fotos, telenovelas e  filmes.

Mil e uma vezes, se transmudou, antes de virar “musa do cinema novo” (como a mídia, estranhamente, a chamou). Quem viu “Noite Vazia” (1964) de Walter Hugo Khouri ou “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969), de Glauber Rocha, saberá bem do que estou falando.

É difícil entender a sua essência íntima. As essências se intuem, não se analisam e não se comentam. Ela mesma se dizia namoradeira e sem preconceitos. E atravessou os dias com a leveza, a aceitação, a doçura e a consciência que só têm as criaturas que sabem que o amor é como um pássaro que voa na distância, um navio com as luzes acesas que afunda em águas noturnas e não deixa vestígios nem fiapos de ressentimento ou de culpa. 

Houve um tempo em que resolveu dar um mergulho para dentro de si mesma. O que resulta essencialmente perigoso, como se sabe e como disse Buñuel. Mas ela o fez. Com vontade, distinção e graça. E foi-se do redemoinho de fama que a rodeava para as montanhas do silêncio. Escolheu se transformar em praticante budista e passou do ruidoso fascínio do sucesso ao esquecimento da meditação. Para espanto de alguns, inconformados com aquela ausência repentina.

Na semana passada, ela morreu dormindo. Dizem que estava depressiva e que morreu de infarto. Mas eu acredito que, com a serenidade de quem se deixa  ir aos poucos, ela mesma escolheu a hora e o modo de sua partida deste mundo.


You may also like

Nenhum comentário: