NO COMEÇO: TAGORE

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JORNAL A GAZETA
CADERNO 2

Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu, como disse Chico Buarque, o saudoso Chico daqueles tempos de muitas rodas vivas atrás. Mas tem dias que a gente se sente como quem retornou ou viveu. É o que digo, hoje que acordei com uma voz silenciosa, audível apenas em minha cabeça, a me recitar um poema.

Dou-me conta, de repente, de que são os primeiros versos que escutei em minha vida. Foram ditos por meu avô, há muito tempo, em uma tarde de luz morna e indecisa, quando Vésper se acendia no céu sobre as águas, no remanso do rio.  

Ele,  meu avô,  acendeu o lampião sobre o balcão da pequena loja de secos e molhados que tinha (loja que a gente, em Conceição da Barra, no passado, sempre nomeou como “a venda”) e me recitou um poema de Rabindranath Tagore.  

Tudo que é necessário para que vocês entendam o que quero dizer está nestas lembranças.

A venda de meu avô tinha imensas portas azuis, assoalho de tábuas e um pouco de tudo: barris de açúcar mascavo, sacos de farinha e de amendoim, garrafas com misteriosas beberagens de aguardente e ervas, cestos de beiju, querosene em litros amarelados, prateleiras com finos tecidos de seda e organdi alternados com fardos coloridos de algodão e de chita, gavetas com miçangas, botões e cadarços e muitas outras bugigangas que, aos meus olhos, formavam um mundo encantado, rodeado pelo balcão de madeira lustroso, com bordas e curvas deixadas pelo tempo.

Mas o melhor estava lá no fundo, em um escritório comprido e estreito, resguardado dos olhos forasteiros. Era lá que eu me sentava no chão e via meu avô mergulhando a pena da caneta de cabo de osso no tinteiro cheio do liquido escuro e depois traçando, no papel, as palavras de contos e poemas que ele escrevia, e que, a meus olhos de menina, eram desenhos mágicos e sem explicação.

Era lá, também, que eu me extasiava diante dos livros, guardados atrás de  estantes envidraçadas que corriam por toda a extensão das paredes. Aquele era o espaço secreto de minhas fantasias, o paraíso dos tesouros por onde vagavam meus sonhos. 

Um dia, meu avô percebeu o meu encantamento. Destrancou a chave de seus castelos de vidro, pegou uma pequena brochura cor de açafrão, abriu ao acaso e leu: 

“Na praia dos mundos sem fim as crianças se reúnem. O céu infinito paira sobre suas cabeças e a água inquieta marulha. Na praia dos mundos sem fim as crianças se reúnem, gritando e dançando. Elas constroem suas casas com areia e brincam com as conchas vazias. Com folhas secas fazem seus barcos e, sorrindo, colocam-nos a flutuar na vastidão profunda. As crianças brincam na praia dos mundos. Elas não sabem lançar as redes. Os pescadores de pérolas mergulham em busca de pérolas, os mercadores velejam em seus navios e, enquanto isso, as crianças apanham pedrinhas e as atiram no mar. Elas não procuram tesouros escondidos, nem sabem lançar as redes. O mar se encapela, gargalhando, e a praia brilha, pálida e sorridente. As ondas assassinas cantam baladas sem nexo para as crianças, como a mãe embala o filhinho no berço. O mar brinca com as crianças e a praia brilha pálida e sorridente. Na praia dos mundos sem fim as crianças se reúnem. A tempestade ronda pelo céu sem caminhos, os navios naufragam no mar sem rotas, a morte está à solta, e as crianças brincam. Na praia dos mundos sem fim as crianças se reúnem para a grande festa.”

Fiquei boquiaberta, pasma e estonteada com tanta beleza. Eu nem mesmo sabia ler! Mas foi assim, com Tagore  e coberto de ritmo, que o mundo da literatura se abriu para mim.



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