Três poemas de "A morte sem mestre", Herberto Helder

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nunca estive numa só linha a tão vertiginosa altura,
oh Anjo Príapo, oh Nossa Senhora Côna!
quando nos vimos nus um em frente ao outro,
em nossa primeira noite nos começos do mundo,
numa pensão rasca de um bairro de quinta ordem,
o putedo sai que entra pelos quartos à volta
- peço por isso que um qualquer erro de ortografia ou
                                                                          sentido
seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro.


o teu nome novo, comecei eu a tirá-lo com uma navalha
                                                               de madeira grossa,
e nunca mais saía a única letra até dentro,
a primeira, e já toda a mão me sangrava
com o talho à volta dos dedos,
e a letra e o melhor do meu sangue e a seiva
metiam-se pela ferida como se ela mesma fosse
o meu trabalho apenas,
sangue que escorria pulso abaixo e me escoava:
a própria lavra da escrita -
oh quando arranjarei mão que alcance em sangue e força
o fundo final desse começo de ti,
nome terreno,
isso: coisa amada tanto quanto o alvoroço mortal deste fim
                                                                                de idade:
será que nenhum poder me devasta ainda?


que um nós de sangue na garganta,
um nó de ar no coração,
que a mão fechada sobre uma pouca de água,
e eu não possa dizer nada,
e o resto seja só perder de vista a vastidão da terra,
sem mais saber de sítio e hora,
e baixo passar a brisa
pelo cabelo e a camisa e a boca toda tapada ao mundo,
por cada vez mais frios
o dia, a noite, o inferno, o inverno,
sem números para contar os dedos muito abertos
cortados das pontas dos braços,
sem sangue à vista:
só uma onda, só uma espuma entre pés e cabeça,
para sequer um jogo ou uma razão,
oh bela morte num dia seguro em qualquer parte
de gente em volta atenta à espera de nada,
um nós de sangue na garganta,
um nó apenas duro


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