COMO CONFIAR NAS PALAVRAS?

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Às vezes, desconfio do tempo. Ou melhor, desconfio de sua existência como algo que passa, marcando o começo e o fim. Para mim, o que ocorre é que o tempo é um tapete infinito que se dobra e desdobra, confundindo quem pretende admirar os desenhos intrincadamente tecidos em suas malhas. Sei disso porque, quando tropeço nas dobras que os caprichos desse tapete mágico vai pondo e sobrepondo diante de mim, vejo coisas, pessoas, paisagens e situações que pareciam esquecidas e extintas. Mas que, de repente, aparecem, desaparecem e reaparecem para sumir de novo, transformadas em poeira de estrelas sugadas pelo buraco negro, que sorve e condensa tudo o que se aproxima do centro de minha memória.

Vocês vão dizer que o parágrafo acima parece delírio de uma tarde de outono. E talvez vocês tenham razão. Não toda, porém meia, um quarto de, ou uma bem diminuta porção de razão. É que nós que escrevemos (pelo menos nós que escrevemos ou que pretendemos escrever ficção) somos todos delirantes confessos.

Conheço um romancista que resolveu, meia hora por dia, posar de estátua. Diz que, assim, antecipa as glórias da imortalidade. Escolhe um local, quase sempre rodeado de fotos trazidas de suas incursões em feiras de literatura. E ali se queda, imóvel e majestático, como se de mármore fosse. Com um de seus livros ligeiramente entreaberto nas mãos.

Outro romancista (não tão laureado quanto aquele primeiro, porém mais accessível, imarcescível e simpático) adora apascentar as formigas. Ele as prende em um cercadinho, alimenta-as com farelos de bolo, restos de açúcar e biscoitos. E canta para elas um cântico, que alguns acham parecido com os balidos das cabras ao pressentirem a ronda de uma onça pintada.

E não só. Eu tenho uma amiga que, além de contista e feicebuquista engajada, se crê uma ave. Nas tardes de verão, se põe à varanda (que é de madeira de demolição, não é de maneira alguma uma “varanda-gourmet”, aliás tipo de mordomia que ela ironiza e ojeriza), ergue o bonito rosto, sacode os cabelos cacheados e estira os braços contra o azul de cobalto do céu, como se estivesse prestes a levantar voo. Trata-se, sem dúvida, de um maravilhoso caso de levitação!

No mais, tendo a imaginar que o delírio é um componente da psique dos humanos. Que mais, senão um delírio, seria o fato de acreditarmos que temos os pés em terra firme e que mundo é uma bola segura?

Basta o vômito de fogo de um vulcão, um maremoto de ondas gigantes, uma fenda que se abre nas profundezas das rochas, um terremoto de magnitude avançada ou qualquer outra manifestação da natureza em fúria. E, pronto! Da pior maneira aprendemos!

Mal o planeta em fúria resolve dar as cartas, se evidencia toda nossa insignificância. Vão-se para as cucuias nossos mais caros sonhos de civilização, nossa ilusão de perenidade, nossa ânsia de domínio e poder. Haja vista as lágrimas, a dor no coração e a garganta seca com que, agora, lamentamos o horror que acontece em regiões como o Chile e o Nepal.

Essa história de delírios, maluquices, desenganos e tragédias se faz aqui presente como intrometida, uma vez que a minha intenção, nesta crônica, era mesmo falar de meus tropeços no tapete do tempo e de recordações.

Como confiar nas palavras? Vejam como as palavras são traiçoeiras e más companheiras para as boas intenções! Elas tomam as rédeas do alado cavalo em que a escritura pensa galopar. E, quando se vê, já se foi toda a página em branco. E uma armadilha de frases já pegou desprevenida a coitada da imaginação.


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