José Saramago

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José Saramago - foto: observer/arquivo

Jose Saramago (poeta, escritor, jornalista e dramaturgo), nasceu em 16 de Novembro de 1922, em Azinhaga/Portugal - faleceu em 18 de Junho de 2010, em Lanzarote, Ilhas Canárias/Espanha. Nobel de Literatura 1998.

Processo
As palavras mais simples, mais comuns, 
As de trazer por casa e dar de troco, 
Em língua doutro mundo se convertem: 
Basta que, de sol, os olhos do poeta, 
Rasando, as iluminem. 
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


Autobiografia de José Saramago
José Saramago - foto: (...)
Nasci numa família de camponeses sem terra, em Azinhaga, uma pequena povoação situada na província do Ribatejo, na margem direita do rio Almonda, a uns cem quilómetros a nordeste de Lisboa. Meus pais chamavam-se José de Sousa e Maria da Piedade. José de Sousa teria sido também o meu nome se o funcionário do Registo Civil, por sua própria iniciativa, não lhe tivesse acrescentado a alcunha por que a família de meu pai era conhecida na aldeia: Saramago. (Cabe esclarecer que saramago é uma planta herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, em épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres). Só aos sete anos, quando tive de apresentar na escola primária um documento de identificação, é que se veio a saber que o meu nome completo era José de Sousa Saramago… Não foi este, porém, o único problema de identidade com que fui fadado no berço. Embora tivesse vindo ao mundo no dia 16 de Novembro de 1922, os meus documentos oficiais referem que nasci dois dias depois, a 18: foi graças a esta pequena fraude que a família escapou ao pagamento da multa por falta de declaração do nascimento no prazo legal.

Talvez por ter participado na Grande Guerra, em França, como soldado de artilharia, e conhecido outros ambientes, diferentes do viver da aldeia, meu pai decidiu, em 1924, deixar o trabalho do campo e trasladar-se com a família para Lisboa, onde começou a exercer a profissão de polícia de segurança pública, para a qual não se exigiam mais “habilitações literárias” (expressão comum então…) que ler, escrever e contar. Poucos meses depois de nos termos instalado na capital, morreria meu irmão Francisco, que era dois anos mais velho do que eu. Embora as condições em que vivíamos tivessem melhorado um pouco com a mudança, nunca viríamos a conhecer verdadeiro desafogo económico. Já eu tinha 13 ou 14 anos quando passámos, enfim, a viver numa casa (pequeníssima) só para nós: até aí sempre tínhamos habitado em partes de casa, com outras famílias. Durante todo este tempo, e até à maioridade, foram muitos, e frequentemente prolongados, os períodos em que vivi na aldeia com os meus avós maternos, Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha.


José Saramago - foto: (...)
Fui bom aluno na escola primária: na segunda classe já escrevia sem erros de ortografia, e a terceira e quarta classes foram feitas em um só ano. Transitei depois para o liceu, onde permaneci dois anos, com notas excelentes no primeiro, bastante menos boas no segundo, mas estimado por colegas e professores, ao ponto de ser eleito (tinha então 12 anos…) tesoureiro da associação académica… Entretanto, meus pais haviam chegado à conclusão de que, por falta de meios, não poderiam continuar a manter-me no liceu. A única alternativa que se apresentava seria entrar para uma escola de ensino profissional, e assim se fez: durante cinco anos aprendi o ofício de serralheiro mecânico. O mais surpreendente era que o plano de estudos da escola, naquele tempo, embora obviamente orientado para formações profissionais técnicas, incluía, além do Francês, uma disciplina de Literatura. Como não tinha livros em casa (livros meus, comprados por mim, ainda que com dinheiro emprestado por um amigo, só os pude ter aos 19 anos), foram os livros escolares de Português, pelo seu carácter “antológico”, que me abriram as portas para a fruição literária: ainda hoje posso recitar poesias aprendidas naquela época distante. Terminado o curso, trabalhei durante cerca de dois anos como serralheiro mecânico numa oficina de reparação de automóveis. Também por essas alturas tinha começado a frequentar, nos períodos nocturnos de funcionamento, uma biblioteca pública de Lisboa. E foi aí, sem ajudas nem conselhos, apenas guiado pela curiosidade e pela vontade de aprender, que o meu gosto pela leitura se desenvolveu e apurou.

Quando casei, em 1944, já tinha mudado de actividade, passara a trabalhar num organismo de Segurança Social como empregado administrativo. Minha mulher, Ilda Reis, então dactilógrafa nos Caminhos de Ferro, viria a ser, muitos anos mais tarde, um dos mais importantes gravadores portugueses. Faleceria em 1998. Em 1947, ano do nascimento da minha única filha, Violante, publiquei o primeiro livro, um romance que intitulei A Viúva, mas que por conveniências editoriais viria a sair com o nome de Terra do Pecado. Escrevi ainda outro romance, Clarabóia, que permanece inédito até hoje, e principiei um outro, que não passou das primeiras páginas: chamar-se-ia O Mel e o Fel ou talvez Luís, filho de Tadeu… A questão ficou resolvida quando abandonei o projecto: começava a tornar-se claro para mim que não tinha para dizer algo que valesse a pena. Durante 19 anos, até 1966, quando publicaria Os Poemas Possíveis , estive ausente do mundo literário português, onde devem ter sido pouquíssimas as pessoas que deram pela minha falta.


José Saramago - foto: Nuno Ferreira Santos
Por motivos políticos fiquei desempregado em 1949, mas, graças à boa vontade de um meu antigo professor do tempo da escola técnica, pude encontrar ocupação na empresa metalúrgia de que ele era administrador. No final dos anos 50 passei a trabalhar numa editora, Estúdios Cor, como responsável pela produção, regressando assim, mas não como autor, ao mundo das letras que tinha deixado anos antes. Essa nova actividade saramago_antiga permitiu-me conhecer e criar relações de amizade com alguns dos mais importantes escritores portugueses de então. Para melhorar o orçamento familiar, mas também por gosto, comecei, a partir de 1955, a dedicar uma parte do tempo livre a trabalhos de tradução, actividade que se prolongaria até 1981: Colette, Pär Lagerkvist, Jean Cassou, Maupassant, André Bonnard, Tolstoi, Baudelaire, Étienne Balibar, Nikos Poulantzas, Henri Focillon, Jacques Roumain, Hegel, Raymond Bayer foram alguns dos autores que traduzi. Outra ocupação paralela, entre Maio de 1967 e Novembro de 1968, foi a de crítico literário. Entretanto, em 1966, publicara Os Poemas Possíveis, uma colectânea poética que marcou o meu regresso à literatura. A esse livro seguiu-se, em 1970, outra colectânea de poemas, Provavelmente Alegria, e logo, em 1971 e 1973 respectivamente, sob os títulos Deste Mundo e do Outro e A Bagagem do Viajante , duas recolhas de crónicas publicadas na imprensa, que a crítica tem considerado essenciais à completa compreensão do meu trabalho posterior. Tendo-me divorciado em 1970, iniciei uma relação de convivência, que duraria até 1986, com a escritora portuguesa Isabel da Nóbrega.

Deixei a editora no final de 1971, trabalhei durante os dois anos seguintes no vespertino Diário de Lisboa como coordenador de um suplemento cultural e como editorialista. Publicados em 1974 sob o título As Opiniões que o DL teve, esses textos representam uma “leitura” bastante precisa dos últimos tempos da ditadura que viria a ser derrubada em Abril daquele ano. Em Abril de 1975 passei a exercer as funções de director-adjunto do matutino Diário de Notícias, cargo que desempenhei até Novembro desse ano e de que fui demitido na sequência das mudanças ocasionadas pelo golpe político-militar de 25 de daquele mês, que travou o processo revolucionário. Dois livros assinalam esta época: O Ano de 1993, um poema longo publicado em 1975, que alguns críticos consideram já anunciador das obras de ficção que dois anos depois se iniciariam com o romance Manual de Pintura e Caligrafia, e, sob o título Os Apontamentos , os artigos de teor político que publiquei no jornal de que havia sido director.

Sem emprego uma vez mais e, ponderadas as circunstâncias da situação política que então se vivia, sem a menor possibilidade de o encontrar, tomei a decisão de me dedicar inteiramente à literatura: já era hora de saber o que poderia realmente valer como escritor. No princípio de 1976 instalei-me por algumas semanas em Lavre, uma povoação rural da província do Alentejo. Foi esse período de estudo, observação e registo de informações que veio a dar origem, em 1980, ao romance Levantado do Chão, em que nasce o modo de narrar que caracteriza a minha ficção novelesca. Entretanto, em 1978, havia publicado uma colectânea de contos, Objecto Quase, em 1979 a peça de teatro A Noite, a que se seguiu, poucos meses antes da publicação de Levantado do Chão, nova obra teatral, Que Farei com este Livro?. Com excepção de uma outra peça de teatro, intitulada A Segunda Vida de Francisco de Assis e publicada em 1987, a década de 80 foi inteiramente dedicada ao romance: Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989. Em 1986 conheci a jornalista espanhola Pilar del Río. Casámo-nos em 1988.


José Saramago - foto: (...)
Em consequência da censura exercida pelo Governo português sobre o romance O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), vetando a sua apresentação ao Prémio Literário Europeu sob pretexto de que o livro era ofensivo para os católicos, transferimos, minha mulher e eu, em Fevereiro de 1993, a nossa residência para a ilha de Lanzarote, no arquipélago de Canárias. No princípio desse ano publiquei a peça In Nomine Dei, ainda escrita em Lisboa, de que seria extraído o libreto da ópera Divara, com música do compositor italiano Azio Corghi, estreada em Münster (Alemanha), em 1993. Não foi esta a minha primeira colaboração com Corghi: também é dele a música da ópera Blimunda, sobre o romance Memorial do Convento, estreada em Milão (Itália), em 1990. Em 1993 iniciei a escrita de um diário, Cadernos de Lanzarote, de que estão publicados cinco volumes. Em 1995 publiquei o romance Ensaio sobre a Cegueira e em 1997 Todos os Nomes e O Conto da Ilha Desconhecida. Em 1995 foi-me atribuído o Prémio Camões, e em 1998 o Prémio Nobel de Literatura.

Em consequência da atribuição do Prémio Nobel a minha actividade pública viu-se incrementada. Viajei pelos cinco continentes, oferecendo conferências, recebendo graus académicos, participando em reuniões e congressos, tanto de carácter literário como social e político, mas, sobretudo, participei em acções reivindicativas da dignificação dos seres humanos e do cumprimento da Declaração dos Direitos Humanos pela consecução de uma sociedade mais justa, onde a pessoa seja prioridade absoluta, e não o comércio ou as lutas por um poder hegemónico, sempre destrutivas.

Creio ter trabalhado bastante durante estes últimos anos. Desde 1998, publiquei Folhas Políticas (1976-1998) (1999), A Caverna (2000), A Maior Flor do Mundo (2001), O Homem Duplicado (2002), Ensaio sobre a Lucidez (2004), Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido (2005), As Intermitências da Morte (2005) e As Pequenas Memórias (2006). Agora, neste Outono de 2008, aparecerá um novo livro: A Viagem do Elefante, um conto, uma narrativa, uma fábula.


José Saramago e Pilar del Río - foto: (...)
No ano de 2007 decidiu criar-se em Lisboa uma Fundação com o meu nome, a qual assume, entre os seus objectivos principais, a defesa e a divulgação da literatura contemporânea, a defesa e a exigência de cumprimento da Carta dos Direitos Humanos, além da atenção que devemos, como cidadãos responsáveis, ao cuidado do meio ambiente. Em Julho de 2008 foi assinado um protocolo de cedência da Casa dos Bicos, em Lisboa, para sede da Fundação José Saramago, onde esta continuará a intensificar e consolidar os objectivos a que se propôs na sua Declaração de Princípios, abrindo portas a projectos vivos de agitação cultural e propostas transformadoras da sociedade.

Nota: Depois de A Viagem do Elefante, José Saramago escreveu Caim e O Caderno I e O Caderno II, livros que não chegou a acrescentar à sua Autobiografia.
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Fonte: Fundação José Saramago/Autobiografia de José Saramago. Disponível no link. (acessado em 02.04.2015).


OBRA POÉTICA DE JOSÉ SARAMAGO
:: Os poemas possíveis. 1ª ed., 1966.
:: Provavelmente alegria1ª ed., 1977; 2ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1985.
:: O ano de 19331ª ed., 1975.
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* Outras Obras do autor acesse Aqui! (acessado em 03.02.2015).


José Saramago - foto:  (...)

POEMAS ESCOLHIDOS DE JOSÉ SARAMAGO

Alegria
Já ouço gritos ao longe 
Já diz a voz do amor 
A alegria do corpo 
O esquecimento da dor 

Já os ventos recolheram 
Já o verão se nos oferece 
Quantos frutos quantas fontes 
Mais o sol que nos aquece 

Já colho jasmins e nardos 
Já tenho colares de rosas 
E danço no meio da estrada 
As danças prodigiosas 

Já os sorrisos se dão 
Já se dão as voltas todas 
Ó certeza das certezas 
Ó alegria das bodas 
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.



José Saramago - foto: (...)
Aprendamos, amor
Aprendamos, amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito
De banhar no azul dos horizontes.

Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes

E desçamos ao mar do nosso leito.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


Arte poética
Vem de quê o poema?
De quanto serve
A traçar a esquadria da semente:
Flor ou erva, floresta e fruto.
Mas avançar um pé não é fazer jornada,
Nem pintura será a cor que não se inscreve
Em acerto rigoroso e harmonia.
Amor, se o há, com pouco se conforma
Se, por lazeres de alma acompanhada,
Do corpo lhe bastar a presciência.
Não se esquece o poema, não se adia,
Se o corpo da palavra for moldado
Em ritmo, segurança e consciência.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


As palavras de amor
Esqueçamos as palavras, as palavras:
As ternas, caprichosas, violentas,
As suaves de mel, as obscenas,
As de febre, as famintas e sedentas.

Deixemos que o silêncio dê sentido
Ao pulsar do meu sangue no teu ventre:
Que palavra ou discurso poderia

Dizer amar na língua da semente? 
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.


Até ao sabugo
Dirão outros, em verso, outras razões,
Quem sabe se mais úteis, mais urgentes.
Deste, cá, não mudou a natureza,
Suspensa entre duas negações.
Agora, inventar arte e maneira
De juntar o acaso e a certeza,
Leve nisso, ou não leve, a vida inteira.
Assim como quem rói as unhas rentes.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


Balança
Com pesos duvidosos me sujeito
À balança até hoje recusada.
É tempo de saber o que mais vale:
Se julgar, assistir, ou ser julgado.
Ponho no prato raso quanto sou,
Matérias, outras não, que me fizeram,
O sonho fugidiço, o desespero
De prender violento ou descuidar
A sombra que me vai medindo os dias;
Ponho a vida tão pouca, o ruim corpo,
Traições naturais e relutâncias,
Ponho o que há de amor, a sua urgência,
O gosto de passar entre as estrelas,
A certeza de ser que só teria
Se viesses pesar-me, poesia.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


Cavalaria
Cheguei esporas ao cavalo
E os sentimentos exaustos
Deram saltos no regalo
Das gualdrapas e dos faustos

A relva cheirava a palha
Desmanchei rosas vermelhas
Mas pasto foi maravalha
Sabia ao sarro das selhas

Porque o cavalo era eu
O cansaço e as  esporas
Tudo eu e a cor do céu
Mais o gosto das amoras

Relinchos eram os versos
Com jeito de ferradura
Que fazia por dar sorte
Mas tantos foram reversos
Que o ventre de serradura
Deu um estoiro deu a morte

Cai a montada no chão
Cai por terra o cavaleiro
Que era eu (como se viu)
Da escola de equitação
Vim ao saber verdadeiro
Das transparências do rio

Agora dentro do barco
Nos remos brancas grinaldas
Tenho os teus braços em arco
Com um colar de esmeraldas 
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.


Disseram que havia sol 
Disseram que havia sol 
Que todo o céu descobria 
Que nas ramagens pousavam 
Os cantos das aves loucas

Disseram que havia risos 
Que as rosas se desdobravam 
Que no silêncio dos campos 
Se davam corpos e bocas

Mais disseram que era tarde 
Que a tarde já descaía 
Que ao amor não lhe bastavam 
Estas nossas vidas poucas

E disseram que ao acento 
De tão geral harmonia 
Faltava a simples canção 
Das nossas gargantas roucas

Ó meu amor estas vozes 

São os avisos do tempo
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.


Diz tu por mim, silêncio
Não era hoje um dia de palavras, 
Intenções de poemas ou discursos, 
Nem qualquer dos caminhos era nosso. 
A definir-nos bastava um acto só, 
E já que nas palavras me não salvo, 
Diz tu por mim, silêncio, o que não posso. 
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


Eloquência
Um verso que não diga por palavras,
Ou se palavras tem, que nada exprimam:
Uma linha no ar, um gesto breve
Que, num silêncio fundo, me resuma
A vontade que quer, a mão que escreve.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


Em violino fado
Ponho as mãos no teu corpo musical
Onde esperam os sons adormecidos.
Em silêncio começo, que pressente
A brusca irrupção do tom real.
E quando a alma ascendendo canta
Ao percorrer a escala dos sentidos,
Não mente a alma nem o corpo mente.
Não é por culpa nossa se a garganta
Enrouquece e se cala de repente
Em cruas dissonâncias, em rangidos
Exasperantes de acorde errado.

Se no silêncio em que a canção esmorece
Outro tom se insinua, recordado,
Não tarda que se extinga, emudece:
Não se consente em violino fado.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.
  

Enigma
Um novo ser me nasce em cada hora. 
O que fui, já esqueci. O que serei 
Não guardará do ser que sou agora 

Senão o cumprimento do que sei.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.

É tão fundo o silêncio...
É tão fundo o silêncio entre as estrelas.
Nem o som da palavra se propaga,
Nem o canto das aves milagrosas.
Mas lá, entre as estrelas, onde somos
Um astro recriado, é que se ouve
O íntimo rumor que abre as rosas.
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.


Integral
Por um segundo, apenas, não ser eu:
Ser bicho, pedra, sol ou outro homem,
Deixar de ver o mundo desta altura,
Pesar o mais e o menos doutra vida.

Por um segundo, apenas, outros olhos,
Outra forma de ser e de pensar,
Esquecer quanto conheço, e da memória
Nada ficar, nem mesmo ser perdida.

Por um segundo, apenas, outra sombra,
Outro perfil no muro que separa,
Gritar com outra voz outra amargura,
Trocar por morte a morte prometida.

Por um segundo, apenas, encontrar
Mudado no teu corpo este meu corpo,
Por um segundo, apenas, e não mais:
Por mais te desejar, já conhecida.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


José Saramago - foto: (...)
Intimidade
No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


Manhã
Altos os troncos, e no silêncio os cantos:
A hora da manhã, a nós nascida,
Cobre de verde e azul o gesto simples
Com que me dás, a tua vida.
Confiança das mãos, dos olhos calmos,
Donde a sombra das mágoas e dos prantos
Como a noite do bosque se retira:
Altos os troncos, e no alto os cantos.
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.

Metáfora
Trago nas mãos um búzio ressoante
Onde os ventos do mar se reuniram,
E das mãos, ou do búzio murmurante,
Alastra em cor e som irradiante
A beleza que os olhos te despiram
- José Saramago, em "Os Poemas Possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


Na ilha por vezes habitada...
Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, 
manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer. 
Então sabemos tudo do que foi e será. 
O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, 
e dizem-se as palavras que a significam. 
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos. 
Com doçura. 
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites. 
Podemos então dizer que somos livres, 
com a paz e o sorriso de quem se reconhece 
e viajou à roda do mundo infatigável, 
porque mordeu a alma até aos ossos dela. 
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres 
como a água, a pedra e a raiz. 
Cada um de nós é por enquanto a vida. 

Isso nos baste.
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985. 


Não me peçam razões...
Não me peçam razões, que não as tenho, 
Ou darei quantas queiram: bem sabemos 
Que razões são palavras, todas nascem 
Da mansa hipocrisia que aprendemos. 

Não me peçam razões por que se entenda 
A força de maré que me enche o peito, 
Este estar mal no mundo e nesta lei: 
Não fiz a lei e o mundo não aceito. 

Não me peçam razões, ou que as desculpe, 
Deste modo de amar e destruir: 
Quando a noite é de mais é que amanhece 
A cor de primavera que há-de vir. 
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


José Saramago - foto: (...)
Nesta esquina do tempo é que te encontro
Nesta esquina do tempo é que te encontro,
Ó nocturna ribeira de águas vivas
Onde os lírios abertos adormecem
A mordência das horas corrosivas

Entre as margens dos braços navegando
Os olhos nas estrelas do teu peito,
Dobro a esquina do tempo que ressurge
Da corrente do corpo em que me deito

Na secreta matriz que te modela,
Um peixe de cristal solta delírios
E como um outro sol paira, brilhando,
Sobre as águas, as margens e os lírios
- José Saramago, em "Os Poemas Possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


No silêncio dos olhos
Em que língua se diz, em que nação, 
Em que outra humanidade se aprendeu 
A palavra que ordene a confusão 
Que neste remoinho se teceu? 
Que murmúrio de vento, que dourados 
Cantos de ave pousada em altos ramos 
Dirão, em som, as coisas que, calados, 
No silêncio dos olhos confessamos?   
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


O tanque
Secou a fonte, ou mais distante rega, 
Não tem água o tanque abandonado. 
Vida que houve aqui, hoje se nega: 
Só a taça de pedra se reflecte 
Na memória oscilante do passado.  
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


Onde
Onde os olhos se fecham; onde o tempo
Faz ressoar o búzio do silêncio;
Onde o claro desmaio se dissolve
No aroma dos nardos e do sexo;
Onde os membros são laços, e as bocas
Não respiram, arquejam violentas;
Onde os dedos retraçam novas órbitas
Pelo espaço dos corpos e dos astros;
Onde a breve agonia; onde na pele

Se confunde o suor; onde o amor.
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.



José Saramago - foto: (...)
Palavras de amor
Esqueçamos as palavras, as palavras:
As ternas, caprichosas, violentas,
As suaves de mel, as obscenas,
As de febre, as famintas e sedentas.

Deixemos que o silêncio dê sentido
Ao pulsar do meu sangue no teu ventre:
Que a palavra ou discurso poderia
Dizer amor na língua da semente?
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.


Pequeno cosmos
Ah, rosas, não, nem frutos, nem rebentos. 
Horta e jardim sobejam nestes versos 
De consonâncias velhas e bordões. 

Navegante dum espaço que rodeio 
(Noutra hora diria que infinito), 
É por fome de frutos e de rosas 
Que a frouxidão da pele ao osso chega. 

Assim árido, e leve, me transformo: 
Matéria combustível na caldeira 
Que as estrelas ateiam onde passo. 

Talvez, enfim, o aço apure e faça 

Do espelho em que me veja e redefina.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


Poema seco
Quero escusado e seco este poema, 
Breve estalar de caule remordido 
Ou ranger de sobrado onde não danço. 
Quero passar além com olhos baixos, 
Amassados de mágoa e de silêncio, 
Porque tudo está dito e já me canso.  
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


Retrato do poeta quando jovem
Há na memória um rio onde navegam 
Os barcos da infância, em arcadas 
De ramos inquietos que despregam 
Sobre as águas as folhas recurvadas. 

Há um bater de remos compassado 
No silêncio da lisa madrugada, 
Ondas brandas se afastam para o lado 
Com o rumor da seda amarrotada. 

Há um nascer do sol no sítio exacto, 
À hora que mais conta duma vida, 
Um acordar dos olhos e do tacto, 
Um ansiar de sede inextinguida. 

Há um retrato de água e de quebranto 
Que do fundo rompeu desta memória, 
E tudo quanto é rio abre no canto 
Que conta do retrato a velha história.
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


Se não tenho outra voz...
Se não tenho outra voz que me desdobre
Em ecos doutros sons este silêncio,
É falar, ir falando, até que sobre
A palavra escondida do que penso.
É dizê-la, quebrado, entre desvios
De flecha que a si mesma se envenena,
Ou mar alto coalhado de navios
Onde o braço afogado nos acena.
É forçar para o fundo uma raiz
Quando a pedra cabal corta caminho
É lançar para cima quanto diz
Que mais árvore é o tronco mais sozinho.
Ela dirá, palavra descoberta,
Os ditos do costume de viver:
Esta hora que aperta e desaperta,

O não ver, o não ter, o quase ser
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.


José Saramago - foto: (...)
Teu corpo de terra e água
Teu corpo de terra e água
Onde a quilha do meu barco
Onde a relha do arado
Abrem rotas e caminho.

Teu ventre de seivas brancas
Tuas rosas paralelas
Tuas colunas teu centro
Teu fogo de verde pinho

Tua boca verdadeira
Teu destino minha alma
Tua balança de prata
Teus olhos de mel e vinho

Bem que o mundo não seria
Se o nosso amor lhe faltasse
Mas as manhãs que não temos
São nossos lençóis de linho
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.


Venham enfim
Venham enfim as altas alegrias, 
As ardentes auroras, as noites calmas, 
Venha a paz desejada, as harmonias, 
E o resgate do fruto, e a flor das almas. 
Que venham, meu amor, porque estes dias 
São morte cansada, 
De raiva e agonias 

E nada. 
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.


Venho de longe...
Venho de longe, longe, e canto surdamente 
Esta velha, tão velha, canção de rimas tortas, 
E dizes que a cantei a outra gente, 
Que outras mãos me abriram outras portas: 

Mas, amor, eu venho neste passo 
E grito, da lonjura das estradas, 
Da poeira mordida e do tremor 
Das carnes maltratadas, 

Esta nova canção com que renasço. 
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985. 


Viajo no teu corpo
Viajo no teu corpo. Só teu corpo?
Mas quão breve seria essa viagem
Se no limite dela a alma nua
Não me desse do teu corpo a certa imagem.
- José Saramago, em "Provavelmente alegria". Lisboa: Editorial Caminho, 1985.


José Saramago - foto: (...)

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Poente
Que podes mais dizer-me que não saiba, 
Veia do sol sangrada para a terra, 
Manso esgarçar de névoa refrangida 
Entre o azul do mar e o céu vermelho? 
Já há tantos poentes na lembrança, 
Tantos dedos de fogo sobre as águas, 
Que todos se confundem quando, noite, 
Posto o sol, se fecham os teus olhos.  
- José Saramago, em "Os poemas possíveis". 3ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1981.

 
 
 
Fonte:
FENSKE, Elfi Kürten


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