ACORDANDO EM VITÓRIA

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Eu acordo quando o grito de uma criança atravessa o espaço, vindo de algum lugar que, ainda no estágio de um meio sonho, eu não reconheço. Até que, de repente, percebo que o sol pulsa lá fora, o rastro de um pássaro cruza o céu e um azul intenso entra pela janela. Então me dou conta de que a cidade que me rodeia com seus cheiros e ruídos é Vitória. Se fosse a habitual cidade em que costumo acordar, um senso terrível de deslocamento e estranhamento me possuiria. E talvez não houvesse essa ponta de incredulidade que se acomoda agora em meu pensamento e urgentemente me traz até a frente do computador e me obriga a escrever esta crônica.

Quero explicar a vocês, meus leitores persistentes e queridos, que foi o convite dos cineastas Ricardo Sá e Sáskia Sá, para que eu viesse participar do júri da X Mostra de Cinema da ABD (que, por incrível coincidência, trata justamente do “Lugar da Memória”), que me trouxe até aqui. E foi puro deleite ver o sucesso de público e o interesse de tanta gente de todas as idades que se movimentou para ir ao Cine Metrópolis da UFES, ao MAES, ao belo SESC/Glória e circulou pelo Corredor Criativo da Nestor, no Centro. Uma pequena multidão envolvida com sons e imagens, a ver filmes e mais filmes.

E esta foi também uma das maneiras mais agradáveis com que, em meio a tantos desacertos, trapalhadas e chatices, o destino teima em me surpreender. Ai quem me dera que a realidade cotidiana fosse assim, cheia de encantamentos de alguns reencontros felizes. Porém a realidade cotidiana, em seu ramerrão de morar em uma pauliceia desvairada, é mais prosaica e mais triste.

A sorte é que vez ou outra, sou surpreendida pela gentileza de alguém que se lembra de mim, cita meu nome e me inclui em algum evento cultural, em algum acontecimento, em alguma oportunidade de retornar ao Espírito Santo.

Aprendi, muito rapidamente, a apreciar a delícia que é voltar a meu território de origem, nem que seja por poucas horas ou dias. Acordo em Vitória e tenho a impressão de que a cidade me aninha no contorno das asas de pedra do maciço central que se abrem bem à frente de minha janela. O sentimento de estar em casa me ataca como um maravilhado absurdo.

Pode ser ilusão de quem vive sonhando com a volta, na eternidade de cada minuto. Mas parece que a ilha me acolhe como os braços da mãe que recebe uma filha, depois de um longo tempo de exílio.

Quase que de imediato compreendo que muito do que eu estava sentindo em outros dias antes deste, quando acordava e escutava o furor matutino dos automóveis que se encrespava e corria lá fora, era um sentimento magoado de ausência. Ausência que se transforma em presença enquanto o dia lindamente amanhece tomado de luz, uma criança grita um nome à distância e algo vem à tona como um reconhecimento profundo de música e lágrimas, de uma coisa muito querida.

Os que conhecem o que seja o delicado xadrez que envolve esse reconhecimento emocional do retorno à terra natal que se deixou ao partir para o estrangeiro me entenderão. Os demais, quem sabe alguns incrédulos e alguns céticos, me acusarão de pieguice ou de estar dizendo bobagens.

Porém o que importa? Importa é que, neste momento, só desejo essa integração capixaba com o sol, com a pedra e com o vento.

A crônica de nossa vida nem sempre pode ser lida por inteiro. Mas eu sei, com um estremecimento de gratidão, que tenho este dom de ordenar esses relatos em minha mente. E depois fixá-los em papel. Escrever. Transformar todos esses detalhes preciosos em palavras.
 
Para vocês, queridas e queridos, minha crônica de hoje. Caderno 2. Jornal A Gazeta.


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