QUASE ELEGIA

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O sobrado se espelhava nas águas da margem esquerda do rio. Lá onde um dia, em um passado longínquo, alguém desembarcou de alguma caravela, se encantou pelas águas mansas do Cricaré espraiadas até o mar, e fincou uma povoação quase à flor das ondas que lambiam o areal.

Já falei sobre o sobrado em uma crônica anterior. Já falei sobre as muitas histórias que o rodeiam e velam por ele através da neblina dos tempos. Já falei também sobre a sua presença em minha infância; sobre as roseiras e laranjeiras plantadas no seu jardim de declive suave que acabava no cais; sobre a escada de madeira lustrosa que dava acesso ao andar superior; sobre o perfume doce que exalavam seus quartos e cômodos; sobre as alegrias e dores que pairavam sobre seus habitantes.

E, se bem me lembra a memória de caracol que ando a cultivar com passar dos anos, já falei sobre o som de um piano que vinha do sobrado, através das suas janelas abertas para a cidadezinha e para os confins desconhecidos, do outro lado do rio.

Pois bem, vocês me dão licença de retornar ao assunto. Sei que alguns me acusam de ser repetitiva. Têm razão. Eu sou como a fita de Möbius, o Bolero de Ravel ou as Variações Goldberg, de Bach. Só sei me repetir e repetir ao infinito a simultânea pertença e diferença de meu próprio ser, diante das trapaças da morte e da vida.

Mas, hoje, tenho um motivo mais que especial para essa repetição. É que, neste mês de maio, mês de flores e lembranças, morreu Marieta Castro, a dona do sobrado.

Ela era a moça linda, que fazia o piano derramar melodias, nas tardes sossegadas. Isso foi naqueles tempos em que a Barra era apenas uma rua que acabava no cemitério que ficava por trás da igrejinha de torre bojuda como um bolo enfeitado pelo galo de ferro. Aqueles tempos distantes em que a Barra - a Conceição da Barra, a Barra da Conceição - era apenas uma rua de barro comprida, a perder-se entre o areal marinho e as trilhas enlameadas que acompanhavam o rio.

Muitas vezes me perguntam como comecei a escrever e quais os motivos de ter escolhido fazer ficção. Venho pensando nisso e nas respostas a dar aos leitores.

Na verdade, essa mania estranha que se chama escrever aconteceu comigo antes mesmo que eu pudesse articular as letras sobre o papel, em palavras e frases. Escrever aconteceu comigo em um estágio anterior à escrita. Eu já escrevia em sonhos, quando articulava as coisas daquele mundo que se movia em torno de minha existência de garota criada sob cuidados de mãe, pai, avô, avó e tias, desde muito cedo metida com livros e lendas, passarinhos e formigas, relíquias e algas, ventos sul e coqueiros, maresia e conchas.

É que, para mim, essas coisas todas tinham uma dupla face. A primeira era cotidiana e exposta; a segunda era secreta e particular. Talvez essa dualidade seja a responsável pelo que agora sou: uma eterna menina brincando de escritora e ficcionista.

E posso dizer que os floreados, as subidas e decidas dos tons, as notas encadeadas da música do piano de Marieta, nas tardes antigas da Barra, também aí se incluem.

Pois, todos os dias, o sol mergulhava no poente por trás dos manguezais, os vultos das embarcações atracadas na ponte começavam a se delinear como farpas escuras contra o céu rosa-alaranjado, os peixes pulavam na lâmina de prata da água, a lua surgia com seu facho de luz. E, todos os dias, eu esperava o som quase imaterial que vinha do sobrado, escorria até meus ouvidos e, como uma promessa de beleza e mistério, abria as persianas de minha imaginação.
 
Queridas e queridos, para quem gosta de ler o que escrevo: minha crônica de 01 de Junho, Segunda-feira. Caderno 2. Jornal A Gazeta.


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