PALAVRAS AO VENTO por Bernadete Lyra

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A palavrinha crônica é filhota do deus grego Cronos, o dono do Tempo. Por essa razão, dizem os mais conservadores, o cronista deve se inspirar apenas nos acontecimentos diários, relatando-os mais ou menos como faz um jornalista. Mas há ainda os mais atrevidos, que aceitam o toque de ficção e as pitadas de fantasia com que um cronista confeita sua crônica, tornando-a diferente do texto informativo. Confesso que nunca sei bem qual rumo tomar nessa bifurcação de caminhos, desde que me aventurei pelo Reino das Crônicas. É claro que isso se deve ao fato de que sou apenas uma modesta escrevinhadora, perdida no emaranhado de cipós e armadilhas que cercam o território em que imperam grandes cronistas, como o nosso Rubem Braga e a nossa Carmélia Maria. E confesso também que o que mais me agrada nesse trabalho quinzenal de escrever para o jornal é a possibilidade de manter um laço de afeto com quem lê, aceita e (por que não?) critica, com gentileza e generosidade, tudo aquilo que escrevo. Para não dizer que estou muito por fora dos chamados “fatos reais”, hoje pensei em começar esta croniquette (obrigada mais uma vez por essa palavrinha, Tião Lyrio), pensei em começá-la citando o que li na semana: “Moscou anunciou nesta quarta-feira que pedirá a reabertura da investigação técnica sobre a queda do Boeing malaio, o voo MH17, no leste da Ucrânia, já que o relatório holandês não buscava a verdade, mas apoiar a versão que responsabiliza os rebeldes pró-Rússia”.Então, de repente, me dou conta das imensas fantasia e ficção que cercam uma notícia como essa! O que seria “buscar a verdade” para qualquer um dos dois lados envolvidos na trama dessa tragédia?O lugar da verdade é a utopia. Sempre ouvi isso de meu sábio avô. Meu avô era autodidata. E lia, sim, Thomas Morus. E o onde fica essa tal de utopia, eu me indagava no verdor de meus sete e poucos anos de menina que devia mais era ir brincar com as crianças na rua, ao invés de ficar boquiaberta a escutar o que não compreendia, ali, ao pé de meu avô.Muito tempo depois, fui aprender que o termo utopia foi criado por Morus, em 1516, como título de um livro em descreve uma imaginária ilha-reino em que todos vivem no melhor dos mundos e tudo vai bem. E mais, aprendi que utopia quer dizer “não lugar”. Ou seja um lugar que não existe. A não ser nos delírios de quem sonha com um local ocupado por uma sociedade de felicidades e benesses. Basta ler Admirável mundo novo, de Aldous Huxley ou 1984, de George Orwell para entender que o desejo de buscar esse lugar utópico acaba levando a um lugar contrário, ou seja, à distopia, onde são criadas distorções e monstruosidades. Foi o que aconteceu no nazismo e congêneres.Mas palavras são palavras. Como plumas perdidas, elas voam ao vento. Assim, para alguns, utopia não quer dizer só fantasia. Pelo contrário, é um projeto real de mudanças. Não vou entrar na discussão. Prefiro ficar nas elucubrações, neste espaço exíguo e restrito. Porém, diante dos acontecimentos que o século XX armou e que, pelo que se sabe, se arrastam de maneira sinistra pelo século XXI adentro, penso que é difícil manter a inocência de acreditar que a humanidade é capaz de realizar o projeto de uma sociedade igualitária e perfeita. Pelo menos sobre o planeta Terra.Mas, vale imaginar o impossível. No Le Nouvel Observateur, Robert Redeker diz que a utopia é como um contrabandista que transporta a força irradiante do sonho ao coração da modernidade desencantada. 

Será ela um protesto contra a fuga dos deuses?.

Pessoas queridas, para quem gosta de ler o que escrevo, aí vai a minha crônica de hoje. Caderno Dois. Jornal A Gazeta.


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