ELEGIA PARA AS ELEGIAS

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Abro o calendário e vejo que a data de publicação desta crônica cai no Dia dos Mortos. Não é fácil para uma mortal escrever nesta data, consagrada à tristeza, ao luto e à melancolia. O melhor seria ficar em silêncio, recolher-me entre minhas lembranças. Pois as lembranças e o silêncio são refúgios seguros (ou quase), diante da inexorabilidade da morte. A última vez que me lembro de ter discutido a mortalidade das criaturas humanas foi quando falei sobre “A morte de Ivan Ilich”, de Liv Tolstói, para uma plateia de jovens estudantes. Nessa obra-prima, que Vladimir Nabokov considera “a mais artística, mais perfeita e de mais sofisticada realização da história mundial” acompanhamos um homem que, pouco a pouco, mergulha no destino comum a nós todos: o fim. Reconheço as comoventes esperanças com que as religiões, das mais variadas maneiras, atravessam essa ideia de fim. Mas não é disso que quero tratar. Voltemos, então, a Tolstói e a sua novela. Em breves 85 páginas, a gente aprende que não é a extensão do relato e nem a grossura de um livro que fazem a sua grandeza. É mesmo difícil encontrar, em toda a longa história da literatura, um retrato tão perfeito de uma personagem e de seu desespero diante da morte. “A vida de Ivan Ilitch era das mais simples, das mais vulgares e, contudo, das mais terríveis. Juiz do Tribunal, falecia aos 45 anos”. No entanto será justamente quando está doente, preso ao leito depois de uma queda de consequências daninhas, que a existência de Ivan Ilitch se revelará mais autêntica e livre. Diante da morte iminente, ele percebe que viveu debaixo de falsas aparências. Clamava por carinho e piedade. Sofria em silêncio. Acalentava o desejo de ser querido e cuidado como se fosse uma criança. “ Sem que ninguém visse, chorava a sua impotência, a sua terrível solidão, a crueldade de Deus, que o abandonava”. É assim que Tolstói faz da história de Ilitch uma biografia da humanidade, em que apenas a perspectiva da morte dá a dimensão exata das coisas. Mas a morte permanece tabu. Na cultura ocidental, pelo menos, a morte é um horror a não ser nomeado, a ser evitado. Basta ver os zumbis, os esqueletos, os corpos monstruosos e as aberrações que perseguem os vivos em filmes, romances, HQs e tantas outras representações, destinadas a fortalecer os estereótipos que assombram os mortais e que exprimem sua concepção de pavor. Desse mesmo jeito atua o furor atual de parecer sempre jovem, uma tentativa dos seres humanos de esquecer a inevitável decadência e velhice que os aproxima da morte.Graças aos deuses, existem artistas, escritores e poetas que explicitam, de modo mais suave, a beleza dramática que cerca essa sorrateira senhora, que chega silenciosa e que já foi chamada de “La belle dame sans merci”, por John Keats.“Caminhas entre mortos e com eles conversas sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito”, diz Carlos Drummond de Andrade. “Ah, mas que palavras podem os vivos dizer aos mortos?”, indaga a divina Cecília Meireles. “Nenhum homem é uma ilha isolada… A morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”, responde John Donne. Mas é Rainer Maria Rilke quem melhor traduz o próprio sentimento de perda que fere meu coração neste dia: “Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo... Mas nós que de tão grandes mistérios precisamos... poderíamos passar sem eles? “. Abençoado poeta! Para esse doce consolo é que existem as elegias.

Queridas e queridos, aí está a crônica feita em homenagem ao dia de hoje. Jornal A Gazeta. Caderno 2.


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