COMO LIDAR COM O OBLÍVIO?

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A Gazeta 07 abril 2014



COMO LIDAR COM O OBLÍVIO?
Bernadette Lyra

O título desta crônica eu tomei emprestado de Adrienne Rich. Em seu livro Sobre mentiras, segredos e silêncios, ela diz:  “Nenhum escritor homem escreveu primordialmente, com algumas exceções, para mulheres ou com a intenção de considerar a opinião das mulheres quando escolhe, em seus textos, o tema ou a linguagem. E, em maior grau, muitas mulheres escritoras escreveram para que fossem lidas pelos homens, como é o caso de Virgínia Woolf quando supostamente estava se dirigindo a outras mulheres”. 
 Essas palavras datam de uma época de luta (são de 1983). Porém, descontando o ardor das batalhas e a militância feminista, Rich acaba tendo razão.
 Da mesma forma, o que a poeta americana fala da Literatura se aplica à História. A História oficial, em geral, também foi escrita por homens e fala sobre os homens. As mulheres sempre foram as grandes esquecidas. Quantas tiveram suas existências obnubiladas, sua atuação minimizada, por mais que tivessem contribuído para a construção da História?
 Este pequeno prólogo (com perfume dos anos setenta, dirão os mais céticos, com uma ironia gulosa) talvez sirva para explicar razões de um romance. Um romance que só foi escrito porque era uma vez uma dama que se chamava Luiza. Uma dama de quem, até hoje, ninguém se arriscou a afirmar qual era o  sobrenome: Grinalda, Grinaldi ou Grimaldi. 
Um dia, um dia do qual nada se sabe, nem mesmo se fazia sol ou chuva, a dama Luiza embarcou em uma caravela, saiu de Portugal e veio para o Brasil.
Isso foi em abril. No ano de 1573. Era na primavera, quando as primeiras rosas se abriam ao suave frio da noite e as valetas e becos se cobriam de lama, urina e marujos na ribeira do Tejo.
A dama Luiza estava casada com Vasco, o filho bastardo de um fidalgo do mesmo nome, que o fez herdeiro de uma capitania além-mar. Ela deixou as regalias da Corte, o conforto, os amigos e a casa, para vir morar com o marido em uma vila situada às beiradas do rio do Espírito Santo. E, logo depois que o marido morreu, deram-lhe um oficial de ordenança e a deixaram governar por uns anos.
Então dizem que os fidalgos, os padres, os noviços, os aventureiros, os ouvidores, os meirinhos, os juízes de vara, os escrivães, os oficiais da fazenda, os burocratas dos campos e todos os moradores das vilas, dos povoados e das terras no entorno do rio a chamavam de “a Capitoa”. Dizem que também desse modo a denominava a ralé dos escravos, os colonos, os peões, os indígenas das aldeias fincadas nas praias e os selvagens emplumados que habitavam muito além das montanhas, em pleno sertão.
 No entanto, o passado caiu sobre a dama Luiza como um pesado manto de sal. Nos anais quinhentistas, quase nada sobrou sobre ela. As duas ou três linhas que a mencionam estão sempre metidas nos feitos dos homens como apêndices ornamentais. Nem mesmo o gesto de revirar papéis, escarafunchar registros, espanejar o mofo, esfregar o polegar no indicador para eliminar a poeira cor de baunilha, depositada em prateleiras e caixas de arquivos garante que num passe de mágica, naus, ventos, medalhas, santinhos, procissões, relicários, escapulários, canhões, alabardas, punhais, arcabuzes, banquetes, jaculatórias, animais, curandeiros, guerreiros, bastardos, desorelhados, degredados, silvícolas, frades e não sei o que mais vão pular diante de nós, oferecendo-nos, meigamente, sua face.
Assim, a vida dessa mulher terminou por perder-se no oblívio e no tempo. Mas, para outra mulher que escreve, nada impede que ela exista. Na fábula e na imaginação.






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Um comentário:

  1. Somente uma mulher de garra como você para, com belas nuances poéticas, nos mostrar "retalhos" da vida daquela que nomina uma das ruas de Vila Velha,onde passei parte de minha infância. Muito bom! Parabéns.

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