SE UM VIAJANTE

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 Se um viajante, não apenas numa noite de inverno, ao contrário do título do intrincado e intrigante romance de Ítalo Calvino, se um viajante, não apenas numa noite de inverno, mas também em dias, tardes e noites de inverno, primavera, outono e verão, se esse viajante, que agora imagino, por algum motivo que lhe deu na telha e que não me interessa nesta modesta crônica indagar, se ele decide cruzar todo o Espírito Santo, ele acaba por acompanhar, bem de perto, o traçado variado e desarraigado de nossa geografia. E, quem sabe, aquele viajante, que veio de outro país e a toda hora questiona nosso modo displicente e mutante de ser, possa até entender porque nós, capixabas, somos feitos assim.
Vamos acompanhar o que esse imaginário viageiro pode encontrar em sua peregrinação. Indo para o sul, lá está líquida luz que incide sobre várzeas e alagados, espalhados ao longo do curso do Itabapoana, antes que deságue no oceano; para o norte, a suavidade pouco mais que arenosa, feita de vestígios ancestrais, com incrustações rasteiras de vegetação e de dunas, que acompanha o riacho Doce em seu manso trajeto pelas última faixa de praia de nossos domínios. A oeste, os olhos esbarram na espessura verde e negra cravejada de montanhas, reentrâncias e vales que formam a corrente de pedra da serra do Caparaó. A leste, é só mar.
Além disso, apertadas entre a serra e o mar, estão duas metades de terra que o rio Doce atravessa como uma artéria grossa: a do sul e a do norte. Na do sul, está embutido, um pequeno coração:  Vitória. A ilha.
Esta é a cartografia do corpo de nosso território, que o peregrino  reconhecerá. Uma cartografia justa, mínima, concisa. E elegante, por tal mesma razão.
Houve um passado em que não era necessário se preocupar com os limites, é bom que a ele se alerte. Era a liberdade que servia de molde ao local. Na medida mais longínqua dos séculos, goitacás, aimorés, botocudos e outros tantos indivíduos das tribos, outrora senhores da terra, iam e vinham por onde bem queriam, navegavam de lá para cá, guerreavam, se banqueteavam, passeavam nus. Porém, desde que um punhado de gente chegou em uma nau estrangeira, fincou os pés, as espadas, os canhões, a bandeira e a posse nos lugares que passaram a chamar de  capitania, iniciou-se a necessidade de fronteiras e de contenção. Linhas imaginárias e acidentes geográficos reais passaram a circunscrever a exiguidade deste nosso espaço, sem que isso diminuísse a existência de tantos contrastes, com os quais somos habituados a viver. Dessa forma, desenvoltamente e com facilidade, aprendemos a pular de um lado para outro: da praia à montanha, do frio ao calor, do ouriço-do-mar à orquídea, da planície ao pico, do asfalto ao navio, do urbano ao suburbano, do atual ao antigo.
Daí, nosso desprendimento. Essa nossa quase displicência com aquilo que chamam de “identidade”; a volubilidade com que praticamos nossos defeitos;  a afetividade de nossa alegria, que não é carnavalesca ou palhaça, mas é a alegria de quem está muito contente em si. E, sobretudo, as relações que mantemos com outros estados nossos vizinhos: a generosidade com que aceitamos suas incursões, as apropriações e adaptações que fazemos de seus hábitos, de suas obsessões, de suas opções culturais.
É que somos capazes disso, senhor viajante hipotético. Somos afeitos a essa constante diversidade, esculpida pelo tempo, pelo vento e pela topografia. Nós, capixabas, somos como os camaleões que mudam de cor sem perder a essência mais profunda do ser.







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