LENDO HERÓDOTO, IV, 196.

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JORNAL A GAZETA
Segunda-feira, 14 de julho de 2014

No amor, todo monólogo se nega a si mesmo – disse Cortázar uma vez.  E eu acredito.  E acredito também que, tal como no amor, na literatura o que conta é falar, é repartir alguma coisa com  alguém, é girar ao infinito esse caleidoscópio em que se vão replicando mariposas, algas, sombras,  fantasmas, monstros, anjos, cinzas, incandescências, enfim, todas essas coisas terríveis e maravilhosas que povoam a mente de um escritor.
Cada leitor é, por sua vez,  alguém que oscila entre o real e o mítico, entre o sonho e a perplexidade. É um aparato de ressonância, como aquelas conchas de caramujo que, mesmo longe da praia, parecem guardar os marulhos das ondas. Assim, qualquer que seja a alternativa de leitura  de alguém, será sempre uma forma de eco daquilo que já está previamente lançado ao vento por quem escreveu.
Mas é certo que nem todos os leitores são iguais. Alguns são bastante singelos, se apoiam em emoções e lembranças pessoais, são tomados pela identificação com alguma personagem ou com algum modo de existência que possam estar descritos em um livro. Outros, apesar de saberem que, de certo modo, tudo que vale a pena é subjetivo, leem mais concretamente, mais preocupados com a fruição artística de que com os jorros e desequilíbrios da sua fonte emocional.
Sim, alguns leitores são especiais. E todo escritor sonha com ter, pelo menos, um desses!
Eu, de minha parte, sou escritora e leitora. Sou um animal literário. Desde o início de minha vida,  sempre estive às voltas com histórias e livros. E como, desde menina, eu morasse entre a beira do mar e as margens do rio, os sons da minha infância foram feitos do ruído constante de águas correntes e de ondas quebrando. Foi o que moldou o ritmo de tudo que escrevo. Foi também o que moldou o ritmo de minhas leituras.
Por tal razão,  gosto de sentir a cadência de um texto. A graça está em observar a variedade de claros e escuros, os tons e semitons na estrutura de sua armação. Foi assim, com essa determinação, que li os contos de “Heródoto, IV, 196”.
Os leitores desta minha modesta crônica, certamente, não precisam de que eu os apresente ao autor, Reinaldo Santos Neves. Muito pelo contrário. É Reinaldo quem vem trazendo aos leitores uma obra que vai na contramão da literatura oficial e certinha, em que tudo é asséptico e todos os heróis são limpinhos e bem comportados. Ou seja, daquela literatura que outro escritor, o soturno e genial Fernando Tatagiba, chamou de “Literatura do Convento da Penha”.
Em “Heródoto, IV, 196” reencontrei um pouco de meu amado Vladimir Nabokov, não só na referência a John Francis Shade, o poeta fictício de  “Fogo Pálido”, mas também na luxuriosa inventiva com que o espírito crítico de Reinaldo dos Santos Neves dispõe as peças desse xadrez .
Lendo a prosa seca, dura e precisa que se faz nesse livro e que o povoa de poetas inventados, literatos “de talento mas não de sucesso”, professores nem sempre bem intencionados e mademoiselles pra lá de suspeitas, descubro que ele apresenta estruturas profundas e reincidentes, cheias de fendas,  mistérios e lances.
Afinal, quem lê quem, quem fala a quem nesse jogo de espelhos  em que a literatura aparece como o leito de um oceano em que se movimentam lagartos monstruosos, peixes escorregadios, serpentes fosforescentes e outros estranhos bichos marinhos?
Para que este enigma  se aclare e a fruição seja plena, os contos de “Heródoto, IV, 196” exigem leitura e releitura, em uma repetição tão deleitosa e constante quanto a saída diária do sol.






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