À MODA DE CORTÁZAR

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11 de agosto de 2014

JORNAL A GAZETA / CADERNO 2

Pode-se partir de qualquer coisa, um caderno com capa vermelha, um peixe pulando no rio, um golpe de vento sul no telhado, a moça que toca a Berceuse de Brahms ao piano, um livro de contos de fadas, um grito de pássaro atravessando a noite. 
O perigo está nisso. Que se pode partir de qualquer coisa. Mas sempre, depois, é preciso chegar. Chegar não se sabe bem a quê ou aonde. E, na chegada,  talvez a gente descubra que andou, correu, voou, nadou, partiu, se mudou,  caiu, levantou, esperou, lutou, desejou, e, no final do caminho, nos braços estendidos, na concha das mãos, nas vértebras da espinha dorsal, no ventríloquo esquerdo, só existirão migalhas, restos e  rastros.
Em vez da casa, em vez do gato, em vez da varanda, em vez do muro, em vez de uma passagem secreta para um outro tempo em que havia um quintal com dois pés de manga e três de limão, folhas de aroeira e tufos de palmas de babosa com espinhos nas pontas.  Em vez do jardim estreito, do perfume de jasmins e de samambaias molhadas. Em vez de uma cortina se movendo ao vento, um cachorro latindo na esquina, em vez da resposta a uma pergunta ou de um sentimento de plenitude que resume a saga da infância, da juventude, em que nada se oblitera, tudo pode vir a ser.
A cidade, a rua, o bairro, a praia, tudo desapareceu. Concha por concha. Grão por grão. Pedra por pedra. Janela por janela. Pelo menos, o  sol, deveria ser o mesmo, mas não é. Não há mapas. Não há porto para a ancoragem. Não há discurso do método.
Onde está a bela certeza de estar viva, quando o coração, golpeado de morte, se debate entre lampejos de sofrimento, tanques, foguetes, cadáveres destroçados, homens cheios de palavras pomposas e de caspa,  crianças enfileiradas de mãos estendidas à porta da iniquidade e cartões de luto expedidos na tela de um aparelho de televisão.
Onde está a autoestrada que leva a um Katmandu sem os percalços, a um Shangrilá sem fronteiras. Onde está o planeta, refúgio de todos os humanos, de todos os  bichos, de todos os cães, de todos os tigres, de todos os gatos, de todos os elefantes, de todos os vertebrados e insetos e répteis e animais que respiram,  mergulham, escorregam, rastejam. Onde está a Terra, livre das hienas da guerra,  da chuva de ácidos, dos resquícios do urânio das explosões atômicas e  dos restos de corpos que explodem na fúria suicida do terror, da estultice e do ódio.
De nada vai adiantar olhar em volta, não há nada ai fora. Só esses lugares postiços, cheios de fotografias enfeitadas com flores, estradas, orlas de areia cintilante e mares azuis que se inventam entre guias turísticos e postagens de mídias sociais. Só o dinheiro, a vaidade, o medo, a ânsia e o desespero das pessoas que apostam uma corrida maluca sem ter hora, nem vencedor.
Você esconde a cabeça no travesseiro, talvez chore. Mas continua a seguir o rumo dos acontecimentos cotidianos banais. 
Você dorme e tem pesadelos. Mas acorda, escova os dentes, vai para o trabalho pela avenida que os veículos começam a atravancar. As portas ainda estão fechadas.  O ar está pesado e há garrafas de cerveja vazias no latão à porta de um bar.
Você pensa que coisas de sua existência vão se perdendo  a  cada quilômetro rodado.  Coisas de que você  se recorda vão se esmaecendo, ao longe. Uma vaga tristeza vai tomando conta de seu coração.
 Você  talvez até chore por cima do volante do carro. Porque sabe que existe esse lugar em algum ponto distante. Esse lugar para onde você se dirige e onde, inexoravelmente, algum dia, é preciso chegar.





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