O FIM DE SEMANA DO CÃO

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A GAZETA 25 agosto 2014

CADERNO 2

Bernadette Lyra

Todo fim de semana, um pequeno cão geme, chora e late, sozinho, preso no apartamento ao lado do meu.
O humano que dele cuida e que ali habita é uma moça de cabelos presos, vestida em uma espécie de uniforme elegante. Cruzo com ela, às vezes, no elevador. Temos um trato educado: “bom-dia”, “boa tarde”, “tchau” e assim por diante. Ela caminha até o fundo do corredor, abre a porta e some lá dentro. Ainda escuto sua fala a conversar com o cãozinho, meigamente, como quem fala com uma criança.
Mas quando chega a noite de sexta-feira, a moça desaparece e só volta ao alvorecer da segunda. Não sei se vai para alguma casinha na praia, alguma pousada nas montanhas. Em uma metrópole, onde ninguém permite demonstrações de afeto além do protocolo, nem é de bom tom indagar.
Talvez, simplesmente, durante esse tempo, fique mergulhada entre bares e festas, com namorados ou amigos. Não se vive nesta cidade imensa sem que, pelo menos nos fins de semana, a obrigação de ser feliz se faça sentir. O certo é que a moça se vai.  E o cão fica sozinho.
Dizem que há uma síndrome de abandono que se encastela no coração de um animal de estimação, a cada vez que alguém some assim. “É um sofrimento que dói como uma ferida”, me disse a veterinária a quem perguntei sobre a situação. E disse mais: “ É muito dolorosa nos cães. Os cães são os herdeiros dos lobos, gostam de andar em matilhas. A humanidade, com a mania de interferência, foi lá e os domesticou. Daí, criou-se um laço de dependência e afeição. Os cães veem no ser humano um igual, um membro de seu grupo. E, além disso, detestam ficar sem companhia”.  
Penso que é justamente isso que acontece com o cão pequenino do apartamento vizinho. Está lá uma criatura que conversa com ele e o mima e o enche de beijos no focinho e põe pedacinhos de bolos e biscoitos em sua boca e que o aninha no sofá, enquanto a tevê é como um navio aceso em todas suas luzes no conforto da sala, à noitinha. E, de repente, ela não está mais lá. A sala escura e gelada; o sofá deserto e já sem as almofadas que foram escondidas nos quartos fechados, para evitar mordidas e danos; a vasilha com ração transbordante e a cumbuca com água; um osso de borracha; os escombros de folhas de jornal dispostas pelo chão de ladrilhos da cozinha para preservá-los. É tudo que fica para ele, debaixo da única lâmpada acesa, quase no escuro, desesperado de medo e de solidão.
Creio que, primeiro, o cão se deita junto ao vão da porta por onde viu sair a moça. Espera. Quer que ela retorne. Quem sabe em sua cabeça de cão fantasie que a moça foi às compras e, logo voltará com petiscos e afagos.
A cada ruído do elevador que para no andar, ele arma as orelhas,  se levanta e suspira,  abanando o rabo. Porém é apenas um outro morador que chega. E o baque seco da porta que se fecha, ao lado, repercute no côncavo magoado de seu coração.
Cansado de querer, ele emite latidos de angústia, que se vão prolongando, sem cessar um minuto, sem sossego e sem calmaria. É verdade que, de vez em quando, se cala em um doloroso silêncio. Imagino que canse. Quem sabe, dormita em um canto. Porém não desiste. E recomeça tudo. Late, geme, chora. Durante três noites inteiras e dois dias.
A madrugada da segunda-feira chega, afinal, violácea e gelada como “la belle dame sans merci”, do poeta John Keats. Estou acordada, sentada à varanda. A meia lua em cima; embaixo, a rua deserta. A sombra de meu prédio se projeta sobre os pés de azaléas. E é como um arcanjo, velando minha insônia e a desoladora insônia do cão.






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2 comentários:

  1. Maravilhosa, Bernadette!! Emocionante. Senti-me como o cãozinho e fiquei com mágoa de sua dona desalmada. Parabéns!! Norma Astréa

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  2. Querida Bernadette, adoro crônicas! Adoro "suas" crônicas! Sempre digo que escrever crônicas é "poetizar" a realidade. E há que se ter muito talento – muito mesmo! - para ‘se’ chegar ao “máximo de matizes”, lembrando uma das crônicas de nosso Braga, sem ostentação. Nada deve sobrar; nada deve faltar. Seus escritos me comovem muito. Obrigadíssimo e um grande beijo.

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