O SACRIFÍCIO

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08 setembro 2014

JORNAL A GAZETA. 

CADERNO 2



Um dia então todas as paredes desta cidade tremeram e nenhuma donzela mais se penteava ao espelho ou trançava os cabelos com o musgo das rochas, nenhum remador mais tocava os remos nos barcos de regata, nenhum catraeiro tentava atravessar a baía levando as criaturas, que corriam à deriva, soltas de um lado para outro do cais, nenhuma paneleira colhia no mangue a argila muito doce e escura, nenhum penitente se açoitava com lascas de metal nas procissões que desfilavam pelas ruas e escadarias.
Mas de cada canto uivava o terral e se levantavam os fantasmas que por tantos e tantos séculos alimentaram a carne desta ilha e, entre gemidos e lamentos, embarcavam para outras trevas, outros rios e outros silêncios.
Nas ruínas do mosteiro de São Francisco, sob o pé de flamboyant inflamado, ficaram os cadáveres dos pássaros e as flores de acácia feitas em pó amarelo, ao sopro do vento.
Nas encruzilhadas ficaram os restos de feitiçaria que as antigas mulheres, às vezes, faziam, ficaram pedaços de velas vermelhas entre contas de rosário douradas e azuis e ninguém se atrevia a pegá-las até que vinham os carros de lixo e os  lixeiros noturnos que as arrecadavam para as almas perdidas, que vagavam e ainda vagam sem sossego, debaixo do céu,  há séculos, descem pela Rua Sete em direção ao porto coagulado por muitas barcaças e muitos navios, passam sobre as carcaças de carros abandonados ao longo da Jerônimo Monteiro, desde o prédio que foi da Marinha até o velho hotel Estoril, e não sabem que vagam ou por que vagam ali.
E havia também garrafas repletas de um líquido negro nas escadas desertas da igreja do Rosário e tambores enfeitados com fitas puídas e vidros vazios e cadeiras que foram do teatro Carlos Gomes e lugares de recreação e balanços de crianças agora abandonados na Praça Costa Pereira e lamentações e gemidos ressoando pelos corredores e painéis e sacadas de grades quebradas de onde pendiam alguns panos, veludos, vestidos arcaicos, mantas, mechas de cabelos.
Cresciam espinhos de cimento pelas ruas da Cidade Alta, a cúpula prateada do Glória derretia, escorrendo até o mar de metal violáceo.
Ah, eu me lembro da lua por cima das valetas e dos mangues, eu que amava tanto a cidade e só tinha o fio de Ariadne para escapar dali.
A água que agora apodrece no lago do Parque Moscoso passava frescamente pelos canais subterrâneos, feitos para acolher a chuva, e o solo agora marcado de lama e de sangue ainda guardava a marca de alegria dos pés.
Eu me lembro que, um dia, naquela praça feita sobre o aterro do mar, alguém me olhava, me falava da morte com tanta intensidade que eu já nem sabia se era de sua morte ou da minha.
E eu me lembro de um lugar circular, sobre esse mesmo aterro, onde as lâmpadas brilhavam entre as árvores e onde tantas palavras e gritos me faziam pensar em massacres, um lugar de expiação e dor, eu não conseguiria explicitar o lugar, demarcá-lo com  exatidão, pois assim estaria condenando a cidade ao envio a cada sete anos sete vezes de sete crianças colhidas ao acaso, arrancadas de frente do prato de sopa, puxadas de dentro de suas famílias, ainda que, em desespero, com os olhos espantados, as mães se agarrem nelas pelo coração, pelos braços e pelos cabelos e tentem retê-las.
Sete vezes o envio de sete crianças a cada sete anos para um tipo de sacrifício terrível. Pois eu sei, por mim mesma, que é assim que temos de pagar por tanta beleza vivida. É assim que pagamos aos deuses. É assim que os deuses cobram de seus eleitos. É assim que temos de pagar nesta ilha.
(Do livro: Memória das Ruínas de Creta).




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