GREGUICES E POESIA

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22 setembro 2014

JORNAL A GAZETA

CADERNO DOIS
  
Na apresentação do livro Musa Paradisíaca, falando sobre o mundinho literário contemporâneo, Luis Dolhnikof comenta: “O resultado é uma cultura de idiotas, na qual cada um dedica-se, orgulhosa e militantemente, a seus pequenos interesses pessoais imediatos, tanto em termos práticos quanto intelectuais”.
O resultado de quê? Vocês me perguntarão. Pois bem, Dolhnikof  está se referindo ao narcisismo, essa prática em que se baseia o consumo cultural, hoje em dia.
É bom ressaltar que “idiota”, no texto acima citado, está em seu sentido grego literal: idiotés. Quer dizer: próprio, pessoal, privado. Em oposição a pólis, que dá origem a público. Como veem, não existe aí ofensa alguma, apenas uma expressão do eruditismo do autor. Portanto, não pensem na conotação de estúpido ou cretino que a palavra  idiota adquiriu depois.
Fico pensando: será que é mesmo possível o que Dolhnikof sugere, ou seja, que a literatura passou a ser reduzida apenas a um símbolo pessoal de status para alguns que não querem perder jamais seus quinze minutos de fama, como dizia Andy Wahorl? Para mim, que sempre encarei o ofício literário como o verdadeiro sal de minha vida, é difícil entender.  Mas talvez sejam os reflexos de uma época em que tudo (e a arte em geral) foi tratada como mercadoria. Por exemplo, nos anos 80, em pleno domínio do yuppismo.
De toda maneira, o comentário do poeta (que, de modo muito bem-humorado, se diz “groucho-marxista”) serve para que eu comece esta crônica, porque vejo nele uma transversalidade do que acabo de ler no poema Perdas e danos, de outro poeta: Caê Guimarães:
“Arrotaram uma arrogância de água mineral gasosa.
Sacudiram qualidades de plástico
num chocalho sem guizos.
Aplausos primeiro
Depois, risos”.
Eu me atrevo a dizer que as belas metáforas presentes nesses versos se referem ao mesmo fenômeno de “idiotismo” literário. Caê Guimarães, nesse poema, aponta exatamente o vazio do hedonismo de tantas produções culturais que não conseguem ultrapassar uma arte idiotés.
Em contrapartida, existe toda uma geração de poetas que entendem que as palavras não são objetos submetidos aos “pequenos interesses individuais”. E, se você abre o facebook e vê  um poema de Caê, logo percebe que ele faz parte dessa geração que não teme deixar o trabalho silencioso, feito na solidão da escritura, emergir generosamente no espaço da mídia, juntando o caráter particular da poesia ao caráter politico e público.
Esses poetas usam a internet como lugar privilegiado de criação e comunicação. Repetem uma sabedoria milenar de uso do espaço que é a marca do “autor menor”, como Franz Kafka, citado por nove entre dez pesquisadores. E só para quem é de fora do métier literário e estranhou o termo, eu explico: um autor  menor não é aquele que produz uma escrita de menor valor. É, na verdade, alguém que pertence a uma minoria seleta e específica e que constrói sua obra individual dentro de um plano literário mais amplo. 
“Sabe o que é poesia? É a nossa tentativa vã de todo dia de vencer a morte”, diz Caê, em uma entrevista.
Só por essa frase, ouso arriscar que ele é um legítimo representante daquilo que a poesia tem de mais livre e de universal, ao mesmo tempo em que conserva os traços de uma personalíssima cartografia poética.
Cada vez que leio um poema de Caê  me vem a sensação de estar diante de um poeta que, em sua rica e intransferível individualidade, pratica o exercício pleno da pólis, na busca da excelência, que em grego (só para voltar a eles) se traduz como a areté.



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