O RUMOR SECRETO DO VENTO

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JORNAL A GAZETA
CADERNO 2
06 outubro 2014


Confesso que, quando leio alguma coisa acerca de meus livros, sou como uma aprendiz de equilibrista. Antes de me aventurar no alto, suspensa sobre um fio, ando por uma fita branca que vai sendo desenhada a minha frente, no chão.
Penso que isso deve acontecer com toda criatura que escreve,  quando se vê diante do que escreve outra criatura que, por sua vez, retoma, em sua própria escrita, o texto que já se escreveu.  Esse é um momento em que a gente é como um anjo torto, não sabe muito bem o que fazer com as asas. É como uma criança que quase nem respira,  brincando de esconder sob um véu.
E, por mais que mais que se ame essa coisa estranha que se chama fazer ficção, todo escritor sabe que o tempo é uma pausa, o espaço é um prolongamento, diante de um exímio leitor. Mais ainda se esse leitor maneja o arsenal teórico da literatura com a competência de um marinheiro que, só de fitar a água na beira do cais, reconhece os vestígios de uma tempestade em mar alto.
Vocês hão de dizer que abusei das metáforas. E têm toda razão. Mas é que as metáforas são pãezinhos mágicos, permitem expressar o que não se consegue com as palavras comuns, por exemplo, a intensidade de uma alegria.
“A alegria é a prova dos nove”, diz Oswald de Andrade. E uma prova dos nove do meu livro “A Capitoa” está no estudo cortante e preciso, afiado  como um bisturi, que dele faz o professor Deneval Siqueira de Azevedo Filho, no curso que ministrou na Fairfield University, Connecticut.  
Por alguma dessas misteriosas conexões entre a literatura, a vida e o sonho, o artigo do pesquisador corresponde fielmente à carpintaria  que moveu a organização do romance.
 De fato, o desejo de trazer ao presente fatos desconhecidos ou quase esquecidos da História do Espírito Santo vem dos casos que escutei de velhos narradores barrenses. Exatamente é isso que o articulista explicita, ao mencionar a condição quase mítica dos  griots, jali ou jeli que “ possuem uma função especial que é a de narrar as tradições e os acontecimentos de um povo”.
A tradição de oralidade, que sempre organiza o universo das histórias que eu conto e que trago comigo desde a infância em Conceição da Barra, é detectada por ele na finíssima análise que traça do “Prólogo”, com as duas meninas que usam um curioso anel partido e passeiam pelos jardins de um castelo, entre rosas e gérberas.
Tudo combina e bate! Sem falar na incrível percepção com que, por alguma sabedoria intuitiva, ele pressente no livro “uma estrutura narrativa e temático-conteudística que nos transporta para Alice através do espelho, de Lewis Caroll, onde Alice tem de ultrapassar vários obstáculos - estruturados como etapas de um jogo de xadrez - para se tornar rainha (Luiza Grimaldi, a Capitoa). À medida que ela avança no tabuleiro, surgem outros tantos personagens instigantes e enigmáticos...”.
Eu pergunto: como -  a não ser através de uma intuição apurada e a par de um intenso repertório teórico literário - poderia o pesquisador adivinhar que a viagem de Alice foi uma das vertentes imaginárias a que recorri enquanto estava escrevendo sobre as andanças capixabas de Dona Luiza?
Talvez esses e outros tantos acertos se devam a uma leitura atenta e erudita. Mas quero crer que se devem também à magia que, às vezes, une a escritura e a crítica. Em especial quando o crítico de literatura consegue entrever, na opacidade de um texto, as pequenas pedras justapostas e sensíveis que constroem a escritura e que a tornam uma casa habitada pelo rumor secreto do vento.







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