ELEGIA FEITA DE PEDRA, BARRO E CAPIM

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JORNAL A GAZETA
CADERNO 2

17 er novembro de 2014


Foi-se o poeta.  O poeta que falava pássaros. Era assim: ele abria a boca e os pássaros fluíam dela. E até cantavam. Isso quando Deus dava bom tempo e a tarde entumecia, posando de buquê de flor.
O poeta se foi. E o que deixou desfrutado, senão rastros de caramujos, pedacinhos de asas de besouro trêfegos, rabos de lagartixas ? (Pena que ele não dizia “taruíras”!...).
A herança do poeta parece ossos de passarinho. Não tem bens de acontecimento. Acontece que é sina de poeta desfrutar de nonadas que deixa, depois, como um rumo nem desconfiado.
Era um desexplicador, o poeta. Era quase barro, quase pedra, quase capim.
Eu, um dia, me apresentaram a ele.  Os dois vínhamos naquela tarde pela terra fria de sapos.  Vinham também conosco esses começos de coisas indistintas que a gente espera dos sonhos. Havia um cheiro de magnólias secas em volta e, no chão, entre raízes de inseto, ciscava um sabiá.
Sentei-me ao pé do poeta. A comitiva atarefada que me acompanhava reclamou que estava eu a vadiar, ao invés de fazer o trabalho que me tinha sido atribuído. Mas eu queria ouvi-lo. E sabia que tinha escolhido a parte melhor, como aquela mulher do evangelho de Lucas.
− Natureza é fonte primordial? – indaguei
−Três coisas importantes eu conheço – o poeta falou. – Lugar apropriado para um homem ser folha; pássaro que se encontra em situação de água; e lagarto verde que canta de noite na árvore vermelha. Natureza é uma força que inunda como os desertos. Que me enche de flores, calores, insetos, e me entorpece até a paradeza total dos reatores. Então eu apodreço para a poesia. Em meu lavor se inclui o Paracleto.
E foi como aprendi. Assim.  Desaprendendo.
De repente, uma cerca de ferro chegou perseguindo o meu trem, que apitava, na urgência de partir com a noite. A comitiva se preparou para experimentar o embarque. Achei que ele embarcaria também.
Perguntei:
 - Dizei-me, Senhor Poeta, com quem quereis viajar? Se é com o Dialetólogo ou com o Major General, General, General.
– Não quero nenhum desses moços, que eles não são para mim. Eu sou um compadre do orvalho, pobre coitado de mim, ai de mim, ai de mim -  foi o que respondeu. 
E logo se foi,  mergulhado no escuro, puxado por ventos e palavras. Reparei que fazia de conta de ter uma perna mais curta, só para fingir andar torto.  Concluí que ele nada responderia que comprometesse a sua condição de Doutor em Formigas (palestrar com formigas é lindeiro de insânia?). O silêncio honrava sua vida.
Apenas uma vez mais eu o vi. Não dá para explicar o que a gente sentia a cada vez que via o poeta.
Nessa ocasião,  ele trazia um olhar cheio de águas, de árvores e de aves. Não mancava. Caminhava calcando as botinas na lama da beira do rio.
- Tivemos saudades de nós – ele disse, me dando um abraço.
Eu vi duas borboletas amarelas pousadas em seu ombro. Fiquei toda minada de sol na minha boca!
− Pode me ensinar a inventar seu retrato?− pedi
− Ao nascer eu não estava acordado, de forma que não vi a hora. Isso faz tempo. Foi na beira de um rio. Depois eu morri 14 vezes. Só falta a última – ele disse.
A última veio agora. E lá se foi o poeta. Por dentro do Pantanal,  onde andava, sempre muito preparado em conflitos
Por isso eu fiz esta crônica, toda tecida com as palavras dele. Eu sempre guardei nas palavras o meu desconcerto. E tenho uma confissão a fazer: noventa por cento do que escrevo aqui é invenção; dez por cento é mentira.
Tenho o privilégio de não saber quase tudo. E isso explica o resto. Escrever o que não acontece é a tarefa da poesia.





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