HOUVE UM TEMPO

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JORNAL A GAZETA
CADERNO 2
03 de novembro de 2014



Houve um tempo em que nós, os nativos da beirada da praia, pouca importância dávamos ao mar. Já estávamos acostumados a ele, habituados a seu rumor incessante.
É verdade que, algumas vezes, atravessávamos as pequenas colinas cobertas de areia, pés de guriri e espinheiros que separavam o mar da cidade. Então, nos  deitávamos ao sol, na imensa faixa de praia deserta, enredada de conchas, estrelas marinhas, águas vivas, filamentos de algas e balsedos.
Afora os instantes em que lhe concedíamos essa breve atenção de lazer, quase nos esquecíamos do mar. Mas sabíamos que ele permanecia ali, muito perto, embalando Conceição da Barra com sua constante presença.  
Assim foi, durante a minha infância. E assim deve ter sido, durante a infância de minha mãe e a de meus avós.  
Até que, um belo dia, começaram a chegar alguns seres estranhos a quem chamamos “os veranistas”.
Era de ver a admiração da gente da terra, espantada com o entusiasmo daquelas criaturas que afluíam na estação mais quente, alugavam as casas, enchiam as pensões, se aboletavam nos bancos de pedra da praça, inundavam as ruazinhas estreitas com sotaques esquisitos.
Ano após ano, os veranistas chegavam como as andorinhas que vinham em revoada e se aninhavam na castanheira da praça. Pagavam o desgaste e o preço, para ter o mais simples e singelo de todos os verões.
Para ir até a Barra,  enfrentavam uma estrada que não era um primor de cuidados. Quilômetros e quilômetros de uma fita de barro sem asfalto, coberta e buracos, largada aos humores da própria natureza. É que nem mesmo se sabia ainda o que era o turismo, essa antiga mania da humanidade de “dar uma volta” fora de seu cotidiano habitat.
Havia veranistas indeléveis, incansáveis e indestrutíveis. E a cada vez, eram mais. Eram muitos. Sobretudo, eram mais e eram muitos os mineiros.
Os mineiros caiam em êxtase, diante do mar. Com arroubos de santos e de iniciados. Com a volúpia sagrada dos míticos. Eram os mais delirantes sectários das praias, sequiosos devotos das águas salgadas, atormentados crentes em perpétua avidez de oceanos.
Bastava um pequeno peixe prateado saltar coruscando na praia, e famílias se juntavam aplaudindo. Bastava uma criança arrancar uma estrela salgada ainda palpitando do fundo das ondas e a praia toda se agitava. Bastava uma onda mais forte encrespar uma cintilação verde-prata e atirar-se com graça aos banhistas para o entusiasmo da mineiridade explodir em delírio.
A par dos mineiros, veranistas de todos os cantos foram aparecendo, convergindo para aquela nesga abençoada de areia brilhante e molhada  que, para eles, se constituía na quinta essência da paz.  
Espanejavam, sem pressa, nas águas de esmeraldino frescor. Absorviam a brisa amornada de sal. Exploravam a doce curva que ia da Bugia, em frente à boca do rio, no Pontal do Sul, até  a  Guaxindiba, de onde se avistavam as dunas de Itaúnas, feitas como algodão-de-açúcar, diluídas na bruma cor de turquesa do céu.   
Eram seres identificáveis pelos sorrisos beatificados em lábios rachados de sal, pelas peles cobertas de queimaduras solares e de unguento para amenizá-las. E quando partiam iam embriagados de sol, consolados de mar.
 Mas tudo isso só existe em minha memória, dizem. E dói quando dizem que os avanços implacáveis das águas já quase acabaram com esse paraíso. E que, hoje, os veranistas (agora, denominados turistas), quando partem, deixam os da terra perdidos na indiferença da espuma dos dias, sem saber o que esperar desse nosso outrora tesouro azul-verde-marinho.






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