POEMAS ESCOLHIDOS DE LILA RIPOLL

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Lila Ripoll - Acervo Delfos/PUCRS


Anunciação
Voam-me pássaros em torno,
numa ciranda sem motivos.
A estrada é fria.
Estou de branco.
Brilha uma estrela em minha mão.

Revoam pássaros em torno.
Meu ombro esquerdo vai ferido.
Medrosos passos vão levando
a fina sombra do meu corpo.

Volteiam folhas,
dança o vento
e a gaze clara do vestido.
Minha cabeça vai pendida
e há uma estrela em minha mão.

Que estranho o caminho andado,
de branco, na estrada fria,
por entre pássaros voando,
por sobre flores caindo
e o ombro esquerdo sangrando.

O mar canta em meus ouvidos
e a Montanha inacessível
estende ramos de paz.
Passam âncoras e cruzes
e há uma estrela em minha mão.

Por que me levam de branco,
na fria estrada de pedra,
com este ombro sangrando,
entre perfumes e asas?

Que anunciam essas cruzes?
Essas âncoras partidas?
Esses pássaros revoando?
E essa estrela em minha mão?

Quem me leva e para onde
com essa estrela na mão?
- Lila Ripoll, em "Por quê?". 1947.


Canção da Chuva
Cai uma chuva tão fina
que quase nem molha a gente.
É uma música em surdina
que apenas a alma sente.

Junto meu rosto à vidraça
e olho a rua sem pensar.
Fico em estado de graça,
como quem vai comungar.

Senhora dos mundos vivos,
Nossa Senhora da Vida,
quantos dias negativos
na minha estrada perdida!

Senhora tu não devias
permitir tantos enganos.
Há excesso de alegrias,
e excesso de desenganos.

Por onde andaram meus passos
vi sinais de desalentos.
Vaguei por muitos espaços
e senti todos os ventos.

Ventos do sul, vento norte,
ventos do leste e do oeste,
tão diversos como a sorte
que tu, na vida, nos deste.

Senhora dos mundos vivos,
Nossa Senhora da Vida —
quantos dias negativos
na minha estrada perdida!
- Lila Ripoll, em "Céu vazio: poesia". 1941.


Canção de agora
Ontem meu peito chorava.
Hoje, não.
Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

Estava ontem sozinha,
tendo a meu lado, sombria,
minha própria companhia.
Hoje, não.

Morreu de tanto morrer
a pena que em mim vivia.
Morreu de tanto esperar.
Eu não.

Relógios do tempo andaram
marcando o tempo em meu rosto.
A vida perdeu seu tempo.
Eu não.

Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.
- Lila Ripoll, em "O coração descoberto". 1961.


Cantiga de roda
"Bota terra no meu lenço,
pra plantá manjericão."
— Ai! versos da minha infância,
meus anos não volverão.

"Atirei um limão verde
por cima da sacristia."
— Ai! vozes que me prenderam
a um passado de alegria!

"Menina, minha menina,
cinturinha de retrós."
— Ai! balcão de nossa loja,
onde andarão meus avós?

"O cravo brigou com a rosa
defronte de uma sacada."
— Ai! cantigas esquecidas,
crianças de mãos trançadas.

"Roda, roda cirandinha,
vamos todos cirandar."
— Ai! prendas da minha infância,
deixem meus olhos chorar!

"Lá vem o sol, vem chegando
redondo como um botão."
— Ai! joguem terra em meu corpo
mas deixem meu coração.

Ai! joguem terra em meu corpo
mas poupem meu coração.

Botem terra no meu corpo
mas plantem manjericão!
- Lila Ripoll, em "O coração descoberto". 1961.


Correntes
Tantos e tantos caminhos
e os meus pés aqui parados
na negativa de andar.
Cansei a boca e o desejo,
Desenrolei pensamentos,
Pedi, pedi que seguissem
E eles ficaram imóveis,
Como rocha junto ao mar.

Há correntes invisíveis
Enroladas no meu corpo.
– Ninguém as pode partir! –
Fico parada às estradas,
Encho a cabeça de sonhos,
Atiro as mãos para frente
Mas nunca posso seguir.

Minha roupa às vezes toma
A forma exata de um barco
Que morre por navegar.
Mas – ai! De mim! – faltam remos,
A água vem, vai e volta,
Molha meus pés invisíveis
E as correntes não me deixam.
– Meu destino é renunciar. –

Os caminhos estão claros
E há um convite sem medidas...
– Ah! Partir minhas correntes! –
Prisioneira do meu corpo,
Sobem ondas de desejos,
Descem ondas de esperança –
Vai e vem soturno e triste
Como a água das vertentes!

Pode a vida fechar todos
os caminhos que me abriu.
Meus pés não querem andar.
Falei sempre inutilmente...
Minha boca é um traço triste
Que perdeu seu movimento
De pedir... sem alcançar... 
- Lila Ripoll, em "Céu vazio: poesia". 1941.


Poema VI
Hoje pensar me dói como ferida.
O próprio poema não é poema.
Tem qualquer coisa de trágico.
De sangue junto ao muro.
De pétalas descidas.
De véu cobrindo o retrato
de um morto.

Hoje pensar me dói como ferida.
Mas é uma imposição-pensar.

Não quero estado de graça,
nem aceito determinismo.
Só a morte é irreversível.

A opressão do azul
aumenta meu conflito,
e é cruel escutar as razões
da razão.

Quisera repartir-me
no cristal da manhã.

Ser um pouco daquela rosa
tocada de irrealidade;
de tênue luz ferindo
o espelho do rio;
daquela estátua pudica
que parece ter ressuscitado
a inocência

Mas em vez disso,
aqui estou:
queimada em pensamentos,
quebrados os instrumentos
do sonho.
- Lila Ripoll, em Poemas inéditos/in: Antologia poética. Rio de Janeiro: Leitura; Brasília: INL, 1968.


Primavera
Setembro entrou pela janela adentro,
com um puro frescor de primavera.
Inunda-se de luz toda a paisagem
e o meu canto transborda à tua espera.

A doçura da tarde é uma carícia.
Entreabrem-se flores docemente.
As nuvens estão nítidas e imóveis
no céu azul aberto à minha frente.

Há murmúrios e vozes pela rua.
Frescos risos distraem meus ouvidos
e ficam borbulhando como fonte
ou como choque de cristais partidos.

A ternura contida de meu peito
ameaça transbordar dentro da tarde.
como um rio fugindo de seu leito.

Minha pobre ternura ignorada,
minha heróica ternura impressentida,
teima em mostrar-se como a primavera,
pensa em tocar de leve a tua vida.

É difícil ser poeta e ser mulher.
É difícil cantar sem revelar.
Pode o poeta contar o seu segredo,
mas a mulher o seu deve guardar.

A ternura contida de meu peito
ameaça transbordar dentro da tarde,
como um rio fugindo de seu leito.

Fecharei a janela à primavera
e calarei o poeta nesta tarde,
para que o sonho em nada me perturbe,
nem meu canto transborde à tua espera.
- Lila Ripoll, em "Poemas e Canções". Cadernos da Horizonte. Porto Alegre: Horizonte, 1957.


Retrato
Chego junto do espelho. Olho meu rosto.
Retrato de uma moça sem beleza.
Dois grandes olhos tristes como agosto,
olhando para tudo com tristeza!

Pequeno rosto oval. Lábios fechados
para não revelar o meu segredo...
Os cabelos mostrando, sem cuidados,
Uns fios brancos que chegaram cedo.

A longa testa aberta, pensativa.
No meio um traço, leve, vertical,
indicando uma idéia muito viva
e os sérios pensamentos: — o meu mal!...

O corpo bem magrinho e pequenino.
— Sete palmos de altura, com certeza. —
Tamanho de qualquer guri menino
que a idade, a gente fica na incerteza!

E nada mais. A alma? Ninguém vê.
O coração? Coitado! está bem doente.
Não ama. Não odeia. Já não crê...
E a tudo vive alheio, indiferente!...

Meu retrato. Eis aí: Bem igualzinho.
O espelho é meu amigo. Nunca mente.
No meu quarto, ele é o móvel mais velhinho.

E sabe desde quando estou descrente!...
- Lila Ripoll, em "De mãos postas". 1938.


Rosas
Rodearam-me de rosas
e o quarto branco do hospital
transfigurou-se.

Rosas vermelhas,
vermelhas rosas,
bandeiras amotinadas
a machucar o silêncio.

Rodearam-me de rosas
e um frêmito vermelho
sacudiu a quietude.

As rosas, as bandeiras
amotinadas, invadiram
o quarto.

Minha cabeça não consegue
pousar no travesseiro.

Porque elas, as rosas,
as bandeiras amotinadas,
são um toque de levantar
- Lila Ripoll, em "Águas Móveis". 1965.



Ternura
Eu te amo com a ternura das mães
que embalam os filhos pequeninos.
E te amo sem desejos.

Perto de ti meus sentidos desaparecem.
Meu corpo tem castidades de santa e de menina.

Quando falas nenhuma sobra se interpõe entre nós dois
Fico presa à palavra de tua boca
e à palavra de teus olhos.
Nada existe fora de nós. Longe de nós...
Tu és o Princípio e o Fim. O Tempo e o Espaço
Cada palavra tua mais espiritualiza
o meu sentimento e a minha ternura.

Tenho vontade de que meus braços se transformem
num grande berço,
para embalar teu sono de homem triste.

Nenhuma estrela brilha mais clara que os teus olhos
na minha alma,
e que a tua palavra no meu coração.

Nenhum homem foi amado com tanta pureza sem pecado,
nem tanta adoração!

Nenhuma mulher vestiu de tanta castidade
seu corpo e sua alma,
para a tristeza de um amor que quer viver,
e quer morrer.
- Lila Ripoll, em "Céu vazio: poesia". 1941.


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